Uma coisa que se aprende quando se começa a lidar com criação de conteúdo de produtos de entretenimento é que não devemos dar opiniões sobre produtos que não conhecemos direito.
Isso é especialmente importante quando se fala de jogos de tabuleiro mais complexos. Porque a experiência com eles pode variar muito, dependendo da mesa, da configuração, da experiência dos jogadores, etc.
Porém, depois de um tempo fazendo isso, nos tornamos mais indulgentes. Começamos a achar que já consegue formar uma opinião com apenas uma partida e com isso acabamos sendo injustos. Ou ficamos super empolgados com o “melhor jogo de todos os tempos da última semana”, ou terminamos metendo o pau em um jogo devido a uma má experienciência que não necessariamente reflete o que o jogo pode entregar.
Eu nunca cheguei a ter uma falha desse tipo aqui nos meus artigos, pois eu tento sempre escrever sobre jogos que eu já conheço bem e, quando faço diferente (como foi o caso do Dorf Romantik, no último texto), eu deixo isso bem claro.
Porém, nas lives e podcasts, onde não temos tanto controle sobre a pauta, os colegas puxam assuntos para os quais você não estava lá muito preparado e você acaba dando opiniões que não foram tão refletidas assim.
Foi o caso do jogo de hoje, o Darwin’s Journey. Ano passado, ao participar de um podcast aqui do Covil, o jogo em questão foi colocado em discussão pelo Jean, que tinha adorado o mesmo e eu tinha uma visão muito ruim dele.
Acabei falando de forma muito pesada sobre o jogo e acredito hoje ter sido injusto. Tempos depois, ao jogá-lo no BGA, minha opinião mudou bastante. E depois de jogá-lo algumas vezes na mesa, acabei revendo a segunda opinião e cheguei a um opinião que agora considero madura.
Como veremos, o principal motivo para essas mudanças de opinião foi a forma como consumi o jogo. Primeiro no TTS, depois no BGA e finalmente ao vivo.
Esse texto então tem duas partes: a primeira é apresentação do jogo e a segunda é a maneira como a forma de jogá-lo (presencialmente na mesa ou no BGA em turnos) alterou profundamente a minha opinião sobre o mesmo.
A viagem do Beagle no Multiverso
Darwin’s Journey é um jogo de Simone Luciani e Nestore Mangoni, oriundo de um KS realizado em 2020, que veio a ser vendido no varejo em apenas 2023 e, em 2024, foi trazido para o Brasil pela Grok Games.
É um jogo típico da escola italiana, com uma alocação de trabalhadores muito interessante e com complexidade entre média e pesada.
No jogo, cada jogador tenta recriar as viagens do HMS Beagle (um navio inglês de reconhecimento e pesquisa, onde o jovem Charles Darwin embarcou no cargo de acompanhante do capitão e pesquisador nas horas vagas) pelas Ilhas Galápagos. Devido a peculiaridade das espécimes encontradas pelo pesquisador e o fato delas terem ficado separadas geograficamente permitiram que Darwin tivesse os insights que culminaram na sua Teoria da Evolução.
O jogo funciona como se a viagem estivesse sendo feita no multiverso por várias equipes diferentes em paralelo, mas todas elas condicionadas pela viagem original (o Beagle “original” dá o ritmo do jogo, indicando a rodada e o espaço onde o barco de cada jogador deveria estar para pontuar sem perder pontos).
Tematicamente, o jogo é meio rocambolesco. Em tese, não estamos realizando as ações em si, mas relembrando elas através dos diários de Darwin (que representam os locais de ação do tabuleiro). Porém, essa visão abstrata fica difícil de justificar quando, por exemplo, se vende espécimes para o museu e se ganha dinheiro com isso (fora as partes onde o tema é totalmente jogado às favas e os locais de exploração simplesmente lhe dão pontos, sem maiores justificativas temáticas).
Dito isso, o tema é muito bem apresentado pelo jogo. A arte é muito bonita e eficaz em termos de explicar as ações e a forma como as ações se encadeiam faz muito sentido. As pontas estão bem amarradas e o jogo possui uma lógica coerente em sua economia.
O jogo é uma alocação de trabalhadores. Cada jogador começa com 4 trabalhadores (tematicamente são estudiosos) podendo ganhar um quinto ao longo do jogo. Esses podem evoluir em conhecimento ao longo do jogo, através da conquista de selos de conhecimento.
Existem 4 ações básicas: explorar a ilha, avançar o navio, enviar cartas e ganhar selos de conhecimento. As duas primeiras são basicamente andar com meeples no mapa, ou nas ilhas ou no oceano e é a forma de obter espécimes, instalar acampamentos e obter diversos tipos de recursos ou pontos.
Ao enviar cartas compete-se numa espécie de controle de área por três bônus que sempre são resolvidos ao fim de cada rodada. Quem tem mais selos em cada um deles ganha um bônus e o segundo lugar um bônus menor.
E ganhar selos é o filé mignon do jogo. É dessa forma que você melhora seus trabalhadores para que eles possam fazer versões melhores das ações básicas ou as ações especiais (que são sorteadas no início do jogo). Cada trabalhador é representado por uma carta que recebemos no início do jogo e cada um deles tem um objetivo (uma certa quantidade de selos em determinadas cores) e uma recompensa quando se alcança essa condição. Além de ser importante para executar as ações em si, as recompensas dos trabalhadores são muito fortes e, pelo menos nas minhas partidas, você precisa completar uma ou duas delas para ter chance de ganhar o jogo.
Ainda é possível usar lentes (para desbloquear as ações melhoradas ou especiais, com a chance de executá-las mesmo sem ter os requisitos), vender espécimes para o museu (ganhando dinheiro ou conhecimento sobre a evolução, que é a principal pontuação de fim de jogo), lutar pela ordem de turno e comprar objetivos (que ao serem completados dão poderes passivos, imediatas ou pontos).
São 5 rodadas e vinte ações (um pouco mais se você conseguir liberar o quinto trabalhador) para conseguir fazer o máximo possível de pontos. As ações começam muito simples, mas à medida que você fica mais poderoso ou desenvolve seus poderes, é possível encadear diversas ações no mesmo turno, sendo muito satisfatório o resultado do que se obtém.
Eu não vou explicar todas as regras do jogo, pois ele é bem complexo e cheio de detalhes. Para quem quiser aprender a jogá-lo, deixo aqui o link do vídeo do Covil com as regras e o Gameplay.
10 coisas que odeio em você
Um padrão comum nas comédias românticas é o casal principal ser inicialmente apresentado como um par de antagonistas que aos poucos vão se interessando um pelo outro até que ficam juntos e são felizes para sempre. O filme acima, que é baseado na peça “A Megera Domada” de Shakespeare, é ótimo por sinal e tem justamente esse padrão.
Isso é mais ou menos o que aconteceu comigo e Darwin’s Journey, só que o “felizes para sempre”, não durou muito. De qualquer forma, fizemos uma DR e hoje somos bons amigos, vivendo em casas separadas (mentira, eu não vendi o jogo, até porque ganhei de presente, mas vocês entenderam a metáfora).
Darwin’s Journey é, para o bem e para o mal, um típico exemplar de jogo da escola italiana. Euro, tema com função mais explicativa do que lúdica, alocação de trabalhadores, cheio de regras arbitrárias (os meeples “pulam carniça” ao explorar as ilhas, mas o navio não; se você escolhe uma ação na mesma página do diário que alguém já foi, paga um custo, lugares no meio do mapa dão pontos sem nenhum motivo que possa ser tematicamente justificado, etc.) que entregam um interessante exercício de eficiência.
Quando eu joguei pela primeira vez, ele ainda estava em KS. Foi uma partida em meio a pandemia, via Tabletop Simulator. Levou mais de 3 horas e eu achei um saco. Acho que não entendi o jogo direito, não conseguia ver o que fazer, me pareceu que ele era um amalgama de mini jogos separados e com a maior parte da ação no seu tabuleiro individual e não no tabuleiro central. Lembro que ele me lembrou o Newton, um outro jogo da escola italiana, que eu detesto, talvez pela questão de você ir evoluindo as ações.
Foi essa impressão que eu mantinha 3 anos depois, quando dei a minha opinião negativa sobre o jogo no Nordicast. Embora eu possa até me divertir com jogos multiplayer solitaire, eu acho que eles são uma tendência ruim para o futuro dos board games. Os jogos italianos muitas vezes exageram no puzzle em detrimento da interação e era isso que eu estava criticando naquele momento.
Alguns meses depois, o jogo apareceu no BGA, com uma implementação impecável. Inclusive, o desenvolvedor colocou uma trilha para acompanhar as jogadas (suas e dos adversários) que ficou excepcionalmente boa.
Jogando em turnos, eu percebi que fui injusto com o jogo. Todas as áreas do tabuleiro são muito bem encaixadas e, à medida que você entende a sua lógica interna, tudo faz sentido. A interação, embora seja basicamente indireta, é sim bem presente e praticamente toda escolha que o adversário faz abre uma oportunidade para alguém fazer algo novo (a regra de pular carniça provavelmente veio disso). Esse jogo definitivamente não é um multiplayer solitaire.
O seu real problema é que ele exige um grande nível de concentração ou de experimentação para encontrar a combinação de ações mais eficiente. É comum ter turnos onde você faz 3 ou 4 ações encadeadas, onde A libera B, que libera C e permite D. O jogo te abre tantas possibilidades que eu chego a ficar 30, 40 minutos fazendo simulações no BGA até confirmar a minha jogada.
E isso é, ao mesmo tempo, o melhor e o pior desse jogo.
Na mesa, ao vivo, não dá pra ficar testando todas as possibilidades. Não sem matar de tédio os coleguinhas que estão aguardando para jogar. Você acaba achando uma jogada boa o suficiente e segue em frente, mas fica com aquela impressão que deixou algo passar.
Não chega a ser um TI da vida, mas é muito. E os turnos se arrastam. Não dá pra reclamar do amiguinho, todo mundo quer ganhar e a pessoa vai ficar experimentando os diversos caminhos para fazer o que ela precisa. Isso faz parte da experiência do jogo.
Joguei uma partida com 4 jogadores em um churrasco e ela demorou umas 4 horas. Só a explicação pode levar facilmente 1 hora. Praticamente não comi o churrasco direito.
Jogo por Correspondência
Por causa da pandemia, eu comecei a jogar no BGA. A princípio, só jogava em tempo real, mas as contingências da vida me levaram para as partidas em turnos assíncronos, onde cada um joga no seu tempo, quando pode. Me acostumei tanto a isso que hoje essa é a forma com que eu mais consumo board games atualmente (mantenho em média dez jogos abertos no BGA simultaneamente, sempre de jogos diferentes).
Reconheço que a maior parte dos jogos perde com isso. Jogar é uma experiencia social, em tese nada supera jogar na mesa, com as pessoas estando juntas.
Porém, em jogos onde o aspecto puzzle esteja muito presente, onde você tenha material para analisar muita coisa sem depender tanto do que o adversário irá fazer, jogar em turnos tem se mostrado uma opção às vezes até melhor que o jogo ao vivo. Eu entendo que esse seja o caso do Darwin’s Journey.
Quando tenho uma jogada importante para fazer, eu espero poder chegar em casa, ligar o computador e analisar todas as possibilidades. É quase como jogar Xadrez por correspondência (como se fazia antigamente, antes dos computadores praticamente resolverem o jogo): você deixa um tabuleiro na mesa, recebe o lance novo, pega um uísque (ou um café, vai de cada um) e fica ali horas analisando como responder.
O prazer do jogo está nisso, poder pensar o tempo que quiser, sem pressão. Nada de relógio, gente reclamando que você demora, pegando o celular pra olhar. Só você e o tabuleiro ali, tentando resolver aquele problema.
Outro dia, vivi uma situação que foi exatamente o contrário disso. Estávamos na casa de um amigo, a mulher dele puxou um assunto que caiu numa discussão controversa, o pessoal estava querendo pedir comida e eu estava tentando, ao mesmo tempo, resolver a comida, participar da discussão e fazer a minha jogada. Deu tilt. Eu tive que parar tudo para me concentrar no jogo e fazer minha jogada.
Não use Darwin’s Journey como pretexto para uma reunião social.
Conclusão
Consegui finalmente chegar a uma opinião madura sobre o Darwin’s Journey. É um bom jogo para jogadores de euro experientes, que brilha muito se você jogar ele em turnos assíncronos, mas que pode se tornar uma experiência cansativa se for jogado com muitos novatos e em um ambiente barulhento.
Na mesa, eu sugiro que se jogue em 2 ou 3 pessoas e num ambiente tranquilo, em um ambiente sem distrações. E se prepare para o downtime, que é inevitável.
No BGA, sem essas limitações, ele é quase perfeito.
Nota 8/10.
Mais um excelente texto. Um jogo que eu vejo muitos elogios, mas não tive interesse justamente pelas questões abordadas no texto, como downtime e pelo nível de concentração exigido que acredito tornar o jogo mais estressante do que divertido. E até mesmo mais frustrante numa derrota, pelos mesmos motivos.
Fred, até que não tem esse problema do estresse, porque ele é contrabalançado com um alto grau de satisfação quando você tem um turno maneiro!
Se a pessoas for competitiva dentro do razoável, isso não vai ser um problema!
“(…) jogos multiplayer solitaire, eu acho que eles são uma tendência ruim para o futuro dos board games”
Bravo!!
Interação é a alma dos jogos.
Modo solo tem o seu lugar (bem necessário), mas chamar alguém pra jogar um jogo sem interação é a coisa mais paradoxal que eu já vi.
Bom saber que Drawin Journey não é assim. Mas dei uma enjoada em alocação de trabalhador. Meu foco hoje é controle de área.
Excelente texto, como sempre!!
Rafael,
Eu gosto quando o jogo permite interações positivas e negativas. E nem toda interação é direta. As vezes tem jogadas boas que tambem abrem novas possibilidades pro adversário. Não é só bloquear.
Acho que o problema é um pouco esse. As pessoas associam interação apenas a marcação.
Obrigado pelo Feedback!
Eduardo