Há 3 anos atrás eu escrevi uma coluna com o nome “O jogo está caro? Você pode substituir!”. O título era uma brincadeira com as invencionices gastronômicas da Bela Gil, mas o texto em si se baseava na ideia de que, para cada lançamento hypado que temos por aí, existe um jogo de catálogo que ocupa o mesmo “nicho ecológico” do lançamento e que pode ser comprado por um preço bem mais em conta. Na ocasião, eu fiz uma comparação entre o recém lançado Everdell e o Imperial Settlers.
O texto foi muito bem recebido (mais de 6000 views na Ludopédia, talvez seja um dos meus artigos com maior exposição) e a minha ideia era fazer outros textos nesse formato. Porém, foi difícil encontrar lançamentos e jogos onde a comparação ficasse atraente. Muitas vezes, o jogo que eu tinha para comparar estava fora do mercado, o que estragava a ideia. Acabei enveredando para outras pautas e o momento passou.
Há algum tempo porém venho pensando em falar sobre a evolução dos euros nos últimos 20 anos e a ideia era justamente comparar dois jogos que fossem parecidos, mas que demonstrassem em seu design algumas das mudanças pelos quais os euros passaram.
Para fazer essa análise escolhi dois jogos do Reiner Knizia, o homem que cansou de ganhar dinheiro no mercado de ações e resolver ganhar (um pouco menos, talvez) dinheiro fazendo jogos. Autor de mais 700 títulos, seu studio bombardeia o mercado com jogos sempre inteligentes, com alguma malícia que você não percebe ao ler as regras. É preciso jogar para vê-la acontecer e jogar de novo para entender um pouco mais.
Reiner Knizia lançou Through the Desert em 1998 e Blue Lagoon em 2018. Vinte anos os separam e, ao mesmo tempo que isso aparece nas propostas do design, dá para ver que os jogos possuem ideias muito parecidas.
Primeiro vamos fazer uma breve descrição de cada um dos jogos e depois discutir sobre como eles se parecem, no que diferem e como essas diferenças nos mostram um pouco do que mudou no design dos euros ao longo dos 20 anos que separam os separam. Porem, elas não mostram tudo e por isso acabei fazendo um adendo, usando Tabannusi como exemplo da escola italiana de jogos e das coisas boas e ruins que vejo nela.
Sendo assim, temos um promoção de 3 por 2! Uma comparação de dois jogos que traz um terceiro jogo de brinde! Espero que gostem!
Through the Desert (1998)
Em Through the Desert cada jogador comanda rotas de comércio que percorridas por camelos através do deserto (daí o nome) e que estão lutando pela presença nos Oásis, controle dos poços artesianos e por ter as mais longas rotas possíveis.
É um jogo de tile placement e pertence a uma informal trilogia de jogos desse tipo do Doutor mais ou menos na mesma época (os outros dois são Tigris & Euphrates – lançado em 1997; e Samurai – lançado em 1998).
Ao contrário do que possa parecer, as peças dos jogadores não são representadas pelas cores dos camelos em si, mas pelos líderes de cada caravana (cada jogador tem um líder para cada cor de camelo).
O jogo começa com a distribuição dos poço artesianos e dos Oásis em um (feio) tabuleiro marcado por um grid hexagonal. Então, os jogadores colocam, em turnos alternados, cada um dos seus lideres em quaisquer posições dos tabuleiro.
Depois que todos os líderes foram colocados, o jogo começa de verdade. Em cada turno, o jogador pode colocar no tabuleiro dois camelos de qualquer cor e com eles estender as suas caravanas (não é permitido colocar camelos soltos no jogo). Se o jogador consegue com isso ser o primeiro a chegar em um poço artesiano, ele ganha o tile do poço (que pode valer de 1 a 3 pontos). Quando o jogador faz uma de suas caravanas chegar em um Oásis ainda não visitado, ele ganha 5 pontos. E, se a caravana de um jogador consegue cercar totalmente uma área do tabuleiro (seja fazendo um círculo ou fechando os pontos com os limites do tabuleiro ou as montanhas representadas no mapa) ele ganha os pontos de cada posição dentro da área cercada e eventuais camelos que estivessem dentro daquela área são excluídos do jogo.
O jogo acaba quando os camelos de uma determinada cor são esgotados. Então, o jogador que tem a maior caravana de cada cor de camelos ganha mais 10 pontos e é isso. Quem tiver mais pontos vence a partida.
Blue Lagoon (2018)
Em Blue Lagoon os jogadores representam, cada um, um líder de uma tribo polinésia, no momento em que esta começa a ser colonizada. O mapa representa uma área rodeada de ilhas, com muitos recursos e vestígios de alguma povoação anterior. Cada tribo quer maximizar sua presença no arquipélago, quer dominar a maior quantidade de ilhas que puder e quer manter uma rota contínua de comunicação pelo maior número de ilhas possível.
Pois bem, o jogo começa apenas com as peças que representam os recursos e as estatuetas distribuídas no tabuleiro. Cada jogador possui de 20 a 30 tiles na sua cor que representam ou um colono em terra ou uma canoa no mar (uma em cada face da peça) e 5 cabanas que representam as suas vilas.
O jogo possui duas fases: a era da exploração e a era da colonização. Em ambas, os jogadores alternam turnos colocando peças no tabuleiro até que todos os recursos seja coletados ou até que todos coloquem suas peças. O que varia é as regras para colocação de peças em cada fase.
Na era da exploração, o mapa começa vazio e cada jogador precisa começar colocando peças no mar (que representam aquela tribo chegando ao arquipélago vindo de outros lugares). Peças no mar podem ser colocadas soltas, sem nenhum tipo de ligação, enquanto peças na terra precisam estar ligadas a uma peça já colocada.
Normalmente o jogadores irão primeiro colocar peças de canoas em locais estratégicos que permitam que depois sua rede possa ser desenvolvida de acordo com os seus objetivos. É importante que os jogadores lembrem de colocar as suas cabanas em locais estratégicos, pois elas serão cruciais para a segunda fase do jogo.
Ao fim da fase, contam-se os pontos obtidos (explicarei ao final) e começa o setup da segunda fase. Nessa fase, as tribos já estão instaladas e buscam colonizar o arquipélago. Retiram-se todas peças do tabuleiro (menos as cabanas), redistribuem-se os recursos no lugares apropriados e o jogo recomeça, só que dessa vez, o jogador é obrigado a partir sempre das cabanas ou de uma peça já colocada no tabuleiro (eu avisei para escolher bem onde colocar as cabanas, não avisei?).
Da mesma forma que a primeira fase, a segunda fase é jogada até que acabem as peças ou que todos os recursos sejam reclamados.
Então verificam-se os pontos novamente.
Como é feita a pontuação: primeiro verifica-se que jogadores tem presença em todas as ilhas ou em todas menos uma (ganhando 20 ou 10 pontos respectivamente). Em seguida, verifica-se a maior rede ininterrupta de cada jogador e por quantas ilhas ela passa, dando 5 pontos para cada ilha. Vemos quem tem a maioria em cada ilha, que vale algo entre 6 e 10 pontos (o mapa mostra o valor de cada uma delas). Por fim, contam-se os recursos: ter 2, 3 ou 4 peças do mesmo tipo dá respectivamente 5, 10 ou 20 pontos, ter pelo menos um de cada dá 10 pontos e cada estatueta vale 4 pontos (a estatueta não é contada como um recurso).
Calculados os pontos da segunda fase, estes são somados aos da primeira fase e quem tiver mais pontos é o grande vencedor.
O que eles tem em comum?
Bem, o primeiro ponto a se considerar é que sãos jogos do mesmo autor e que trazem consigo muito do estilo do mesmo. Knizia é conhecido por jogos elegantes, com turnos de ações simples, onde a complexidade está na consequência das suas ações, no que você abre mão a escolher algo. E esse é o caso desses dois jogos. Você coloca uma ou duas peças no tabuleiro e passa a vez.
Em ambos os jogos, o tema é basicamente decorativo, servindo apenas para ajudar a explicar as regras e justificar a arte dos componentes (o que é mais uma característica típica dos jogos do Knizia). Não seria um exagero considerá-los jogos abstratos, mas usando a minha própria escala de abstração, eu ainda os reconheço como euros.
Os dois são jogos de colocação de peças, onde os tabuleiros são mapas organizados em um grid hexagonal, a ação do jogo é basicamente colocar uma peça no tabuleiro e nos oferecem uma série de objetivos de curto e longo prazo que precisam ser balanceados em busca de melhor pontuação possível.
Por fim, ambos são jogos de informação completa, possuem zero sorte e lidam com alguma espécie de controle de área de montagem de redes e captura de peças.
O que tem de diferente?
Through the Desert se apresenta como um jogo mais “adulto”. O jogo já teve várias versões, mas a arte da capa tenta ser mais realista, o tema é apresentado de modo bem sisudo (o tabuleiro é quase que inteiramente ocre – o que faz algum sentido, é um deserto) e o grande destaque são as peças de camelos, que são muito bem modelados e apresentados em diversos cores de tom pastel.
Já Blue Lagoon possui um apelo bem mais juvenil, com uma arte bem colorida, com leves referências ao desenho da Disney (Moana), e diferente do outro jogo, com peças muito mais simples, feitas em papelão (apenas as cabaninhas se destacam, em madeira).
Embora tenha essa pegada menos “séria” na sua apresentação e temática, Blue Lagoon é um jogo um pouco mais denso, com muito mais formas de pontuar. Além de apresentar mais recursos (no Through the Desert temos apenas os Oásis e poços artesianos, enquanto em Blue Moon há vários tipos de recursos e as estatuetas). A principal diferença porem, é que Blue Lagoon possui “eras de jogo”, enquanto Through de Ages possui apenas uma.
Mais do que os detalhes das regras, o que importa mesmo são as consequências delas para o design do jogo. Como tem menos objetivos a disputar, Through the Desert se torna um jogo mais tático. É mais fácil prever os resultados das ações, porque os jogadores estão buscando mais ou menos as mesmas coisas. Quando você abre mão de disputar um poço artesiano de 3 pontos para não perder a chance de chegar em um ponto distante do tabuleiro e não ficar preso, a conta do que se perde e do que se ganha é relativamente tranquila de fazer.
No Blue Lagoon, é mais complicado, porque os objetivos de curto prazo podem se transformar objetivos de longo prazo. Aquele recurso que você ou seu rival podem pegar não valer nada para um, mas muito para o outro (digamos que seja o quarto do mesmo tipo). Porem, se você não colocar aquela peça antes que cortem o seu caminho, o estrago pode ser imenso. Blue Lagoon te dá mais no que pensar.
Para concluir a comparação: eu gosto dos dois jogos mas, se tiver que escolher um, fico com o Blue Lagoon, que tem edição nacional (Grok Games, 2022) e que com praticamente a mesma quantidade de regras, traz um desafio mais interessante do que o Through the Desert.
O que esperamos de um euro hoje em dia?
Ao longo dos anos, é notório que os euros vem aumentando seu nível de complexidade. Isso é legal por um lado, pois os jogadores experientes realmente parecem clamar por isso. Por outro lado, tem um efeito colateral negativo, que é o aumento da Analisys Paralisys, também conhecida como AP. Para quem não conhece o termo, é a tendência do jogador ficar num dilema, tentando achar uma solução para uma situação onde não é claro para ele quais são as consequências de sua escolha. Ele então fica tentando calcular todas as possibilidades para decidir qual a melhor opção.
Quando isso começa a ocorrer de forma muito frequente, o tempo de jogo se arrasta e os demais jogadores tendem a perder o interesse na partida. Aí aparece o fiel escudeiro da AP, o downtime, ou tempo morto. Aquele momento do jogo onde o adversário está jogando e você não tem nada pra fazer e aquela vontade irresistível de olhar o telefone te domina.
Downtime não costuma ser um problema em jogos como esses dois que discutimos, por que eles possuem uma estrutura de turno muito simples (jogue uma ou duas peças). Porem, infelizmente, jogos desse tipo vem se tornando minoria no mercado. Em seu lugar, temos cada vez mais jogos cheios de procedimentos de manutenção e turnos super estruturados, com o jogador tomando várias decisões na mesma jogada.
Bem vindos a escola italiana.
Tabannusi (2021)
Essa semana eu conheci o Tabannusi, um dos jogos da famosa série de jogos começados pela letra de T de Danielle Taschini, o autor de Teotihuacan, Tzolkin, Tekhenu, entre outros menos votados.
Como quase todo jogo da escola italiana, Tabannusi é um jogo de seleção de ações que, de uma maneira um tanto poética, pode ser interpretado como “alocação de trabalhadores”.
Resumindo muito o jogo, existem três bairros residenciais, um porto e o bairro dos Zigurates (os templos) e você precisa ao mesmo tempo construir prédios nesses lugares e subir suas trilhas de pontuação de modo que, quando cada bairro tiver sua pontuação ativada (que acontece quando acabam os recursos daquele bairro, representados por dados), você consiga pontuar melhor os prédios daqueles lugares. Cada bairro tem um tipo de recurso, que serve para uma coisa diferente e você primeiro precisa projetar os prédios antes de construí-los (mas pode construir os projetos dos amiguinho, inclusive o jogo tem um interessante mecanismo de interação positiva te incentivando a isso).
Não se enganem, embora eu esteja fazendo uma crítica, eu adoro os jogos da escola italiana. São normalmente jogos muito bem feitos, com mecânicas de seleção de ação interessantes, com bons elementos táticos e estratégicos e interessantes desafios de otimização.
O problema é que eles estão se tornando jogos com uma enorme barreira de entrada a novos jogadores.
Vamos ver o caso do Tabannusi: o manual tem 40 páginas. Cada uma das principais ações tem nada menos do que sete tópicos de regra para explicá-las. A pontuação tem um algoritmo para ser realizada (na verdade são 3 algoritmos, porque o porto e os Zigurates pontuam de forma diferentes do que os bairros residenciais).
A explicação média para jogadores experimentados em jogos desse tipo leva, no mínimo, meia hora e o tempo de arrumar o jogo é outro tanto. Leve em consideração que a primeira partida terá muito consulta ao manual, porque há muito detalhezinho de regra importante que faz diferença e você tem uma primeira partida que levará facilmente de 3 horas e meia a 4 horas de jogo.
Seria menos ruim se você soubesse que ia jogar várias partidas e que o investimento de tempo seria recompensado quando você absorvesse de fato o jogo mas, a dura verdade é que a maioria de nós joga pouco mais do que duas ou três vezes um jogo desse tipo. A menos que o jogo se torne muito badalado, muitas vezes você nunca terá chance de jogar o suficiente para de fato entender todas as nuances e jogar realmente bem.
Gostemos ou não, o hobby é muito mais sobre conhecer novos jogos do que sobre extrair tudo que se pode cada jogo que se compra. É ótimo conhecer jogos novos mas, pelo menos para mim, é meio frustrante perder 30 a 40 minutos antes de cada partida aprendendo um jogo para talvez nunca mais jogá-lo.
Sinto falta de jogos que sejam profundos, mas mais fáceis de explicar, que eu não precise reler todas as regras novamente a cada vez que vou jogá-lo porque é cheio de detalhezinho de como fazer as coisas e como resolver exceções.
Conclusão
Isso vem se tornando um problema, pois o mercado hoje está ficando dividido em dois polos: jogos de entrada, muito simples e indulgentes, que levam no máximo uma hora e meia ou jogos bem pesados, que levam 3 horas, fora o tempo de explicação (sem contar na pesada curva de aprendizado para dominar o jogo). Há um relativo abismo entre esses dois polos.
Esse espaço era bem ocupado por jogos como Puerto Rico, Stone Age, até mesmo o Agrícola, mas não se faz mais jogo assim, porque os cracudos acham que eles são simples demais e os jogadores casuais acham que é muito complicado.
Hoje, pelo menos no que toca aos euros, mesmos jogos que são claramente projetados para serem acessíveis, como Flamecraft, trazem mais elementos do que jogos “sérios” de alguns anos atrás. Algo se perdeu no caminho.
Por isso, acho importante valorizar jogos como os que comparei hoje. Jogos de regras simples que entregam muito, que podem ser jogados várias vezes e que permitem muita experimentação de estratégia.
Nós, jogadores experientes, não começamos no hobby com as preferências que adquirimos ao longo do tempo. Nós contamos no passado com diversos jogos de média complexidade para ir refinando nossos gostos até chegar no ponto de hoje aproveitar bem jogos como Barrage ou Tabannusi. Ninguém começa de cara gostando desses jogos, isso é um gosto adquirido.
E como as pessoas podem adquirir esse gosto? Subindo a curva de aprendizado de maneira mais devagar. Jogando jogos que sejam elegantes, mas profundos, acostumando-se a pensar mais em jogos com menos elementos para depois aceitar investir tempo aprendendo jogos mais complicados. E para isso, muitos dos novatos dependerão de jogadores como nós, que fazemos papeis de curadores e devemos apresentá-los a jogos que eles vão curtir (ao invés de colocarmos na mesa o jogo que apenas nós conseguiremos apreciar).
Senão fizermos isso, acabaremos fechados em um nicho e, quando a era de ouro dos board games (que ainda estamos vivendo) terminar, só restarão lembranças e jogos nas estante que não temos com quem jogar.
Bem, pelo menos eles tem modo solo, não é?