O futuro chegou.
É 2024 e eu nem notei como chegamos aqui. Desde Junho de 2015, por uma decisão não refletida e bastante impulsiva, eu crio, desenvolvo e promovo jogos de tabuleiro por profissão. Foram anos muito bem vividos, com muitos acontecimentos, muita diversão e muito, mas muito MESMO, aprendizado.
A indústria dos jogos de tabuleiro modernos no Brasil é relativamente recente. No final da década de 2000 e início da década de 2010 foi quando ela começou a ter um crescimento grande. Várias empresas foram criadas, algumas que já não estão mais aí e outras que se consolidaram. Jogos novos trouxeram jogadores novos e um público cada vez maior para as mesas de jogo. Em 2024, o mercado de jogos de tabuleiro ultrapassa os 150 milhões de dólares de faturamento anual no Brasil.
Já em 2015, tudo era diferente.
Não, nem tudo era mato, como dizem por aí. A Galápagos já era uma empresa bastante relevante. Zombicide já estava no Brasil, angariando um público totalmente novo. Coup já era o jogo de blefe favorito de muita gente, mesmo antes de aparecer como “Golpinho” no BBB 2017. Dixit, Ticket to Ride, Catan, Carcassonne, todos esses títulos já estavam presentes no Brasil, localizados para nossa língua, por meio do ótimo trabalho de diversas editoras.
No entanto, é um fato que os jogos brasileiros, criados e desenvolvidos no Brasil, eram outro tipo de produto. Muito menos designers investiam nesse caminho, muito menos editoras dispunham de orçamento para esses jogos e o trabalho praticamente se dava somente de forma independente.
Que eu me lembre, apenas ACE Studios e Histeria tinham jogos brasileiros como seu core business. Algumas outras empresas tinham empreendido algum sucesso com jogos nacionais, como a Coisinha Verde, a Grok e a própria Galápagos. A MS Jogos já possuía o seu maior sucesso: DOGS e o Macri já era um dos dois maiores game designers brasileiros.
Sergio Halaban já tinha sido recomendado ao Spiel des Jahres e já possuía jogos publicados em diversos países, além de ter feito jogos em colaboração com grandes autores, como Bruno Faidutti.
De lá pra cá foram muitas mudanças, muitos novos designers, novas editoras, novos lojistas etc. E nesse texto eu vim falar sobre coisas que eu aprendi nessa jornada.
Vale explicar que nesses 9 anos eu já fiz muita coisa diferente dentro da indústria. Já fui autor, desenvolvedor, editor, redator, revisor, social media, youtuber, liveiro (fazedor de lives), podcaster, promotor, explicador de jogos, treinei equipes de vendas de lojas de rede, entreguei jogos em estoques de multinacionais, fui à eventos, fui expositor em feiras brasileiras e internacionais, fiz entrevistas com personalidades brasileiras e gringas, dentre várias outras coisas. Além disso, durante todo esse período, fui empresário de uma empresa que já pivotou ao menos 3 vezes.
Somando todas essas experiências, acho que eu posso dizer que deu pra aprender uma coisa ou outra, então vamos a elas.
#1 – VOCÊ NÃO VAI VIVER DE SER AUTOR DE JOGOS…
…pelo menos no início da sua carreira.
É verdade, o papel mais difícil de sobreviver na indústria brasileira é o papel de game designer, ou autor de jogos.
Não é que não dê pra viver de ser autor. Dá, mas isso requer uma de duas coisas: consistência ou um hit. Jogos de tabuleiro, via de regra, pagam aos seus autores Royalties pelas vendas de suas obras.
Um jogo paga, em média, 4 a 8% do preço sugerido de venda como Royalties. Se você é autor de um jogo que custa R$ 100,00, por exemplo, a cada unidade vendida você recebe R$ 8,00. Se você ficar com 100% desse valor (ignorando outros autores, a editora, os impostos e outros custos), você precisa de 2118 unidades vendidas por ano para ter uma renda próxima de um salário mínimo mensal.
Vender 2118 unidades de um jogo em um ano não é tanto problema mais no Brasil, apesar de ainda ser considerada uma boa venda. No entanto, poucos são os jogos que pagam isso e, no longo prazo, poucos duram vendendo essa quantidade mensal.
Pra viver bem de jogos você precisa de um jogo que venda, 10 a 20 vezes essa quantidade anualmente. Aí sim você passa a ter um salário melhor e pode pensar em viver disso. E olha que eu nem considerei as perdas que você fatalmente terá nesse caminho, como a divisão de royalties com outros autores ou com o Leão da receita.
Você vai precisar, portanto, de um jogo que venda muito bem, que tenha um bom preço de mercado e que se sustente por um longo tempo pra viver disso de forma confortável.
Outra forma de você fazer isso é pela constância através do tempo. Quando você atinge um certo tempo criando jogos e já possui diversos jogos publicados, todos eles geram receita pra você juntos.
A conta é simples, se a cada ano você cria dois jogos e um deles sobrevive ao tempo, no final do seu 5º ano você vai ter criado 10 jogos e 5~6 deles continuam gerando receita pra você, mesmo depois de você já não mais trabalhar neles de forma direta.
Ao longo de 10, 12, 15 anos, a tendência é você ter mais jogos que contribuam para sua renda e isso vai te dar certo conforto para poder viver disso, de fato.
#2 – O BRASIL NÃO É O SEU MERCADO PRINCIPAL
Apesar de todo o crescimento recente do mercado brasileiro de jogos, é improvável que você ganhe dinheiro real fazendo jogos apenas no Brasil. Dá pra viver de fazer jogos só pro Brasil? Sim, mas é um cenário que te limitará mais e também vai te gerar menos frutos.
O mercado de fora, principalmente o americano e o alemão, são mercados mais robustos e que, além de terem mais clientes potenciais, remuneram melhor. O Dólar e o Euro nas cotações dos últimos anos favorecem muito o nosso trabalho daqui do Brasil. Se um jogo te paga 2000 euros anuais de royalties, no momento deste texto isso significa que você recebe mais 12.000 reais anuais de royalties daquele único jogo.
Então um jogo de 40 Euros que te paga 8% de Royalties já vai te pagar quase o salário mínimo mensal citado anteriormente.
#3 – APROVEITE O FATO DE ESTAR NO BRASIL
Se o Brasil não será seu principal mercado, ainda existem diversas vantagens de estar aqui. A principal delas é: o Brasil é um ÓTIMO mercado de teste para o seu jogo.
O mercado brasileiro possui menos concorrência que o internacional. Menos jogos são lançados, menos concorrência na ponta. Além disso, o fato do idioma ser o português também cria uma barreira natural para certos produtos vindos de fora. Aproveite isso. Crie jogos rapidamente e lance-os no Brasil assim que possível.
Ao mostrar um jogo para alguma empresa de fora, ter os números do mercado brasileiro ajuda demais a criar uma melhor perspectiva para eles de como o jogo performa em outro mercado.
Além disso, ter uma plataforma de lançamento de jogos é muito importante. Quando eu fechei um acordo de licenciamento com uma editora brasileira e deixei de atuar como editor, muitas coisas positivas aconteceram, mas uma coisa bastante negativa que aconteceu por conta disso foi ter perdido uma plataforma de lançamento de jogo. É muito mais fácil licenciar um jogo já lançado em algum lugar, com track record.
#4 – A LUDOPEDIA É INCRÍVEL
Este quarto item está separado, mas o que eu direi aqui poderia estar no tópico de cima também. Escolhi colocar separadamente por ser uma parte muito importante do tema.
A Ludopedia é uma ferramenta necessária para o mercado brasileiro. Se o restante do mundo tem o Board Game Geek como principal repositório de jogos de tabuleiro e cartas, a Ludopedia, em português, facilita demais o alcance dos jogos para novos públicos. O conteúdo 100% em português ajuda mecanismos de busca e também ajuda a referenciar os seus jogos, você como profissional e as próprias editoras.
Utilize do poder da Ludopedia. Crie textos, crie diário de design, alimente a página do seu jogo com conteúdo. Tire o máximo de proveito dessa ferramenta incrível e exclusiva do Brasil.
#5 – CRIE CONTEÚDO
Não tem como fugir disso. Pra vender jogo, você vai precisar aparecer.
Claro, existem vários designers que vendem bem e não aparecem. No entanto, o caminho é mais tortuoso. O público brasileiro consome muitos jogos por gostarem pessoalmente dos autores.
Criar conteúdo com constância também vai te permitir criar uma comunidade. Essa comunidade vai te ajudar a lançar mais e mais jogos.
#6 – VOCÊ É UM VENDEDOR
Uma das lições mais importantes é uma das coisas que eu aprendi mais cedo na vida. Não importa o que você faça, se você precisa que pessoas comprem os produtos nos quais você trabalha, você é um VENDEDOR.
Vender é o que sustenta o seu trabalho.
Cada venda feita, cada jogo que sai, te deixa mais perto do seu objetivo final. Não tenha vergonha de vender jogos. É o seu trabalho. É sua obrigação vendê-los.
#7 – VALORIZE O COMPRADOR
Não existe ninguém mais importante para o seu objetivo do que as pessoas que compram o seu jogo. Seja grato a essas pessoas. Verdadeiramente grato.
Ser grato significa, também, valorizar o tempo dessa pessoa. Trabalhe o máximo para que o produto que compraram tenha uma ótima relação custo-benefício. Valorize o tempo delas à mesa e proponha-se a entregar a melhor experiência possível.
Sempre que falhar com isso – como eu falhei no manual do Pescado Novo, por exemplo – tente corrigir a rota o mais breve possível, sinta o erro e busque melhorar.
#8 – NEM TODOS VÃO GOSTAR DO SEU JOGO
Jogos são diversos e realmente existem gostos muito diferentes entre os jogadores. O seu jogo não vai conseguir agradar a todos. Isso não é algo pessoal contra você.
Algumas pessoas, por vezes, só preferem gastar o tempo delas com outra experiência. Isso não é um problema. Se o seu jogo for bem feito, pensado para uma experiência específica, ele provavelmente encontrará um público próprio.
#9 – NEM TODOS VÃO GOSTAR DE VOCÊ
Criar conteúdo, ser um vendedor, se expor… tudo isso aumenta seu contato direto com o público, e isso, apesar de incrível, tem um lado muito complicado de superar: os haters.
Quanto mais você se expuser, mais pessoas vão gostar de você, assim como mais pessoas não vão gostar de você. É o natural.
Mesmo sabendo disso, é bem difícil superar certos comentários e certas acusações que podem surgir contra você. Por vezes parece injusto, perseguição. Talvez seja, talvez não. Pode ser que essas pessoas estejam corretas. Pode ser que as características que você valoriza na sua personalidade sejam as mesmas que as pessoas detestam. Acontece, fazer o quê?
O que eu sei é que você parar não vai fazer os que não gostam de você passarem a gostar. Na realidade, parar vai só te afastar das pessoas que gostam e valorizam o seu trabalho.
#10 – COMECE PEQUENO
Muitos de nós, que nos apaixonamos por jogos de tabuleiro, começamos a ter a coceira de criar jogos a partir de experiências com jogos maiores e mais complexos. No meu caso, não foi bem assim, mas também não foi muito distante disso. Eu comecei a querer criar jogos por conta do King of Tokyo.
Apesar de não ser um jogo tão grande, KoT é suficientemente grande para ser desaconselhável como o seu primeiro jogo. Comece pequeno, busque ser publicado. Pra isso, facilite a vida de quem quiser publicar um jogo seu (mesmo que seja você mesmo). Faça jogos com uma quantidade de componentes razoável e com baixo custo de pré-produção (arte, redação, tradução etc).
Meu conselho: atenha-se às cartas. É tão mais fácil publicar jogos com poucos componentes que o esforço de começar pequeno pode ser facilmente recompensado.
Para se ter uma ideia, o meu jogo que teve a melhor relação horas trabalhadas X retorno $$$ até hoje foi o 1000?. Ao longo de algumas semanas, eu e o Jordy trabalhamos algumas horas no jogo e licenciamos, um mês depois da criação, para 5 idiomas, vendemos os direitos mundiais do jogo e também conseguimos publicá-lo no Brasil.
Até hoje temos editoras atrás da gente perguntando do jogo. 56 cartas. Esses são os componentes do 1000?.
Comece pequeno.
#11 – VÁ A EVENTOS
Os jogos de tabuleiro são, via de regra, experiências presenciais, físicas. É na mesa de jogo que o produto deve brilhar o máximo. Por isso, não se furte a ir aos eventos disponíveis no Brasil para que você possa apresentar o melhor dos seus jogos para o público.
Além de ser uma ótima oportunidade de apresentar os produtos, os eventos presenciais são uma grande injeção de ânimo quando você está precisando. O contato direto com o público é essencial. Ver as reações das pessoas jogando seus jogos é impagável.
#12 – CONTINUE CRIANDO JOGOS NOVOS
O mercado de jogos de tabuleiro é bastante movido por novos lançamentos. Por isso, uma das coisas que mais dá fôlego de vendas é o fluxo de novos jogos sendo lançados. Continue criando novos jogos. Não pare, não deixe as demandas do dia-a-dia de uma editora te impedirem de criar jogos, principalmente os seus próprios.
Um dos meus erros como editor foi lançar poucos jogos meus como autor. Em 9 anos foram 5 jogos lançados que foram assinados por mim, sendo 2 nos últimos 12 meses. Isso faz diferença. Os jogos que você assina são seus. Os jogos de outros autores são seus apenas enquanto durar o contrato.
Não deixe de lançar jogos dos outros, mas lance os seus.
#13 – A CAMINHADA É SOLITÁRIA
Ninguém vai saber tudo o que você passa. É simplesmente impossível. Não crie expectativas de que as pessoas serão solidárias aos seus sentimentos ou dificuldades. Não serão.
Seus problemas são seus, suas dificuldades são suas. É sua responsabilidade – e somente sua – resolver.
É claro que existem exceções, mas aja pela regra: resolva os seus BOs.
#14 – CRIE RELACIONAMENTOS
Se a caminhada é solitária, o que torna menos solitária são as pessoas que encontramos no caminho.
Lojistas, editores, game designers, jogadores, produtores de conteúdo… Todos nós estamos nessa indústria por paixão. Em diversas outras indústrias existem caminhos mais rápidos e mais seguros pra ganhar dinheiro e viver bem. Quem está na indústria dos jogos já tem uma coisa em comum com você.
Esses relacionamentos vão tornar momentos pesados mais leves e momentos bons melhores ainda.
Além disso, é através desses relacionamentos que você pode acabar recebendo oportunidades. Hoje, vários dos meus melhores amigos eu conheci pelo trabalho com jogos e a maior oportunidade da minha carreira veio através de um deles. Não existe downside em criar relacionamentos.
#15 – SEJA LEAL E VERDADEIRO
Essa é uma lição pra vida. Seja leal e verdadeiro.
Ser verdadeiro pode ter um alto custo imediato, mas no longo prazo é o melhor caminho. Ser verdadeiro também não implica em não ser gentil. Seja verdadeiro, com gentileza e educação.
Ser leal é a característica que eu mais valorizo em pessoas. Ser leal significa honrar compromissos e seguir princípios. Não aja pelas costas de ninguém, não dê voltas nas pessoas, não engane. Isso não significa ser bobo. Não seja bobo, inocente demais, mas não aja de forma desonrada com as pessoas.
Isso serve pra qualquer área da vida.
Condensar 9 anos em 15 tópicos não é possível, por isso, estes são só alguns aprendizados que eu tive ao longo do tempo trabalhando com jogos de tabuleiro.
Nessa trajetória eu já me diverti muito, me desesperei na mesma proporção, me encontrei como profissional, conheci pessoas incríveis e outras nem tão incríveis assim. Fiz amizades maravilhosas… tem sido uma grande montanha russa, mas quem já andou em uma montanha russa sabe que, assim que ela termina, dá vontade de ir de novo.
Excelente o tópico e as reflexões Renato!
Eu tenho alguns jogos – desses bem caros – e pouco carteado, por não ter uma base de jogadores boa. Mas estou sempre atento a seus lançamentos e ávido para ter oportunidade de joga-los. Uma hora dá certo e gostaria de acrescentar os títulos a minha luderia pessoal (não gosto do termo coleção, por entender que gostaria de ter jogos como ferramentas fluídas, ou seja, manuseáveis, usáveis, jogáveis, que vêem mesa, enquanto coleção acaba tendo um peso mais austero, protegido, estéril).
Uma exceção será o OZOB, não por você ou pelo Jordy, mas por não coadunar com a linha ideológica dos donos da IP. Eu até lamento – não gostar sem conhecer… mas os caras saíram da linha demais pro meu critério pessoal de conduta e coerência.
Além de tudo e fora do tópico, parabéns pela jornada pessoal e pela dedicação em se aprimorar como ser humano. Mens sana in Corpore sano
Grande abraço e sucesso sempre!
Fala, Marcelo. Tudo certo?
Muito obrigado por ter tirado um tempo para ler o texto e comentar. Muito obrigado também pelo apoio e pela torcida. Discordâncias ideológicas acontecem, são parte do jogo.
Concordo muito com sua visão do aspecto coleção X luderia pessoal (eu chamaria de ludoteca). Acho, sim, que nossos jogos deveriam ser para usufruto, não só para admiração. Eles foram criados para serem jogados e é na mesa de jogo que entregam seu máximo. Mas também são bem agradáveis aos olhos hahaha.
Um forte abraço
Baita texto! Não tenho o interesse/conhecimento necessário pra trabalhar com jogos de tabuleiro mas encontrei diversos pontos neste texto que se aplicam à minha área e até aprendizados muito legais de vida. Parabéns pela jornada e por compartilhar seus erros e acertos.
Quanto aos “haters” citados, acho que uma pessoa ter a atitude de querer prejudicar ou criticar desnecessariamente(sem ser uma crítica construtiva) algo feito por você, que ela pode não ter gostado o suficiente, diz mais sobre ela (a pessoa) do que sobre você.
Admiro seu trabalho, e que seu caminho continue cheio de sucessos!
Fala, Bruno! Muito obrigado por ter tirado um tempo para ler o texto e mais ainda para comentar aqui. Acho que é isso, várias lições são lições para a vida, mesmo, independente da área de atuação. Sobre haters, acontece, não é um grande problema, mas uma necessidade humana encontrarmos mocinhos e vilões.
Um abraço!
Linda trajetória resumida em sábias palavras, reflexões que podemos trazer para os vários campos da vida, como bem colocou.
Que você continue firme no propósito de criar jogos e levar diversão à mesa da galera.
Você é um querido e eu não imagino o hobby sem figuras como você.