Quando eu estava no ginásio, o meu maior medo era que a professora de português propusesse uma redação de “tema livre”.
Tema livre é algo aterrador. Escreva aí sobre qualquer coisa. Sobre o que eu vou escrever?
É muito mais fácil quando alguém te propõe um tema ou assunto. Você pode gostar ou não do tema, mas ele está ali, é uma coisa objetiva, a qual você pode analisar, discutir e sobre a qual concluir algo.
As limitações, ao invés de diminuir a criatividade, a aumentam, pois lhe dão um norte e pontos de apoio onde, sem elas não teríamos onde nos escorar.
O texto de hoje vem de uma percepção que tive enquanto jogava o recém-lançado Abluxxen. Adorei o jogo. Quando percebi que ele era da dupla Kramer & Kiesling, que são dois dos maiores designers de jogos “de caixa grande”, tive a ideia de verificar que outros designers de board games tinham tentado fazer jogos de baralho e analisar como eles se saem com as restrições desse gênero que, embora aparentemente limitado, possui uma imensa variação que pode ser constatada nos milhares de jogos feitos com baralhos.
Pelo que vocês poderão ver aqui, acredito que eles se saíram muito bem.
Os jogos vêm em uma ordem crescente da minha preferência (isto é, do décimo para o primeiro) no momento em que escrevo, mas não é um ranking definitivo. Outros jogos que eu gosto muito não entraram porque já escrevi sobre eles (como Lhama e Kariba).
Antes de começar, preciso fazer uma observação sobre nomenclatura: os jogos que vou apresentar aqui não são, necessariamente, o que atualmente vem se denominando como “carteado”. Esse termo vem sendo usado para descrever jogos de um conjunto específico de mecânicas (vazas, climbing, rummy, etc.).
Afim de poder incluir os autores que achava importantes, usei uma definição bem mais ampla e por isso estou adotando a terminologia “jogos de carta”. Basicamente eu estou me limitando a jogos onde as cartas sejam o elemento central do jogo e que tabuleiros e marcadores, casos sejam usados, sirvam apenas para organizá-las na mesa e contar pontos.
De qualquer forma, acho que ficou uma boa lista e espero que vocês gostem!
10 – Bohnanza (1997), Uwe Rosemberg – Versão brasileira: Paper Games (2017)
Bohnanza é um jogo de negociação, gestão de mão e formação de conjuntos, desenvolvido por um então jovem estudante de estatística alemão chamado Uwe Rosemberg. O jogo foi lançado pela Amigo e foi um enorme sucesso, tanto no mercado alemão quanto no mercado americano.
O jogo é muito simples de regras: Você possui 5 cartas e elas sempre representam a semente de um tipo qualquer de feijão (o nome do jogo é um trocadilho em alemão, “bohn” significa “beans”, que é feijão em inglês) e na hora de jogá-las na mesa ou de receber cartas novas, você não pode alterar a ordem delas. No seu turno você precisa plantar pelo menos a primeira delas e pode (mas não é obrigado) a plantar a segunda. Após isso você abre duas cartas do baralho e pode usar tanto essas cartas abertas quando cartas da sua mão para fazer trocas com os adversários.
A questão é que você tem apenas dois “campos” para plantar e em cada campo só se pode plantar um tipo de feijão. Se você tiver que plantar um feijão e não tem espaço para ele, será obrigado a fazer a colheita, mesmo que ainda não esteja lhe dando pontos.
Tirando o tema agrícola, o jogo não tem muita coisa em comum com os jogos posteriores do Uwe, que acabou se especializando em jogos de alocação de trabalhadores onde não há nenhum espaço para negociação.
Como Bohnanza é um jogo fortemente baseado em negociação, ele depende muito da mesa para funcionar. Eu só joguei uma vez e faz bastante tempo, mas lembro de na época não ter achado muita graça. Pesquisando para o texto, vi um gameplay em vídeo e acredito que, se eu o jogar hoje em dia, provavelmente ele melhorará na ordem dessa lista.
Independente da minha opinião, é um jogo extremamente bem-sucedido, vende bem até hoje e está para receber uma nova versão, com um tema de flores que terá a arte da Beth Sobel (a mesma que assina as cartas de Wingspan).
9 – Port Royal (2014), Alexander Pfister – Versão Brasileira: Paper Games (2017)
Port Royal tem algumas semelhanças com Bohnanza. Assim como o primeiro, este é um jogo feito pelo autor logo no início de sua carreira. É um jogo onde o baralho é percorrido inteiramente algumas vezes e que as cartas são usadas simultaneamente como os objetos do jogo (barcos, pessoas, expedições ou taxação) ou como moedas (quando são pegas e utilizadas pelo verso). E aí acabam as semelhanças.
Este é um jogo de montagem de motor e de forçar a sorte. No seu turno, cada jogador puxa cartas até decidir parar ou até encontrar dois navios da mesma cor. Se isso acontecer, ele estoura e não faz mais nada. Se ele parar antes, ele poderá pegar uma carta para si e as demais cartas poderão ser compradas pelos adversários, que terão que lhe pagar um tributo de uma moeda.
Os navios sempre dão dinheiro e as pessoas custam dinheiro, mas dão pontos e algum poder. Existem algumas cartas de expedição, que basicamente são trocadas por cartas que possuem alguns símbolos e as cartas de taxação punem quem tentar segurar muito dinheiro por algum tempo.
O esquema de forçar a sorte no jogo é muito bem-feito, com elementos que te colocam o tempo todo em dúvida sobre continuar ou parar. Se consegue abrir 4 ou 5 barcos de cores diferentes, pode comprar 2 ou 3 cartas simultaneamente. Os barcos normalmente podem ser rechaçados se você tiver poder militar suficiente para isso.
Tudo isso em um jogo que é muito rápido, pois o gatilho de fim de partida é alguém alcançar 12 pontos, então não dá para fazer um motor muito sofisticado. O jogo é mais tático do que estratégico, ganha quem aproveitar melhor as oportunidades que tiver.
Acredito que muitos se perguntaram por que eu não escolhi o “Oh My Goods”, que é um jogo de cartas do Pfister posterior e bem melhor ranqueado no BGG. Eu tenho os dois jogos, mas nunca consegui colocar o “Oh My Goods” na mesa, então fiquei com esse, que conhecia bem.
8 – Kokopelli (2022), Stefan Feld – Queen Games (2021, não há versão brasileira)
Pois é, até o Stefan Feld, o rei dos euros médios com tema quase inexistente, em algum momento de sua carreira se deixou levar pelos jogos de carta. Kokopelli é um jogo relativamente recente, tendo sido lançado pela Queen Games em 2021, sendo 32º jogo lançado pelo designer alemão.
Como sempre, o tema é colado com cuspe. Kokopelli é uma deusa da fertilidade dos povos originários do sudoeste americano. Ela é representada como uma figura corcunda tocando uma flauta, que ela tocaria para afastar o inverno e trazer a primavera. Mas nada disso importa no jogo, que poderia ser sobre qualquer coisa!
Nesse jogo, cada jogador tem o seu baralho próprio, formado por cartas de dez tipos diferentes (dentre 16 que vem na caixa do jogo, cujo insert claramente foi pensado para abrigar expansões). As cartas representam diferentes habitantes da vila, cada um com um poder específico. A área de jogo de cada jogador é formada pela sua própria vila (com 4 espaços para cartas) e por 2 espaços da vila dos adversários que estão ao seu lado. O jogador pode jogar cartas em quaisquer desses espaços, o que gera uma enorme interação.
Em seu turno, o jogador possui duas ações a executar, dentre as seguintes:
- Comprar uma carta
- Iniciar um ritual (isso é, jogar uma carta em um espaço vazio da sua área de jogo, contanto que não exista nenhuma carta do mesmo tipo presente na mesma)
- Aumentar um ritual (jogar uma carta em ritual já aberto – os rituais nada mais são que conjuntos de cartas do mesmo tipo)
- Cancelar um ritual
- Trocar cartas
Um ritual aberto na sua vila lhe dá o poder que aquela carta possui. Eles normalmente mudam as regras do jogo, criando facilidades ou dificuldades ou lhe permitem ganhar pontos extras. Enquanto o ritual estiver aberto, você tem aquele poder. O ritual é encerrado de duas formas: quando você gasta uma ação para isso ou quando a quarta carta é incluída ao mesmo. Nesse caso, a pessoa que colocou a carta ganha a ficha de pontos disponível para aquele tipo de carta e, caso o ritual tenha sido terminado por um jogador que não é o dono da vila, este recebe um ponto.
O jogo vai assim até que algum jogador consiga exaurir seu baralho ou que todas 9 fichas de fim de partida (que substituem as fichas de ritual) entrem em jogo. Aí joga-se uma rodada a mais e o jogo termina. Quem tiver menos cartas no baralho faz 5 pontos, o segundo faz 3, quem tem cartas na vila faz um ponto por posição preenchida e esses se somam aos pontos obtidos durante o jogo.
Como eu disse antes, o jogo é muito interativo, pois as vilas interferem umas nas outras e as oportunidades de se aproveitar da jogada do adversário ou de bloqueá-lo são inúmeras (e são o que dá graça ao jogo). Acredito que a melhor configuração para jogá-lo seja em três pessoas, de modo que todos interajam entre si.
Infelizmente, Kokopelli não fez muito sucesso. Talvez por ter sido lançado durante a pandemia, talvez por ser muito diferente do que os fãs do Feld esperem e talvez porque seu setup seja meio demorado para o tipo de jogo que é. Ainda assim, é um jogo bem divertido, que eu gostaria de ter mais chance de jogar.
7 – Hanabi (2010), Antoine Bauza – Versão Brasileira: Paper Games (2019)
Antoine Bauza é um designer francês extremamente bem-sucedido, responsável pelo desenvolvimento do premiado 7 Wonders e do ótimo Takenoko (que é um dos jogos mais bonitos que eu conheço).
Hanabi também é um jogo premiado, vencedor do Spiel des Jahres em 2013. Aqui, estamos tentando soltar fogos de artifício de forma coordenada de maneira a fazer o melhor espetáculo possível.
Em termos mecânicos, o jogo é basicamente uma paciência em grupo. A principal sacada dele é que cada um tem uma mão de 5 cartas, mas fica vendo apenas o verso delas, com os colegas vendo as suas cartas. A graça do jogo está em conseguir fazer com que as cartas sejam descidas na ordem correta, antes que o baralho acabe ou que tenhamos 3 erros, o que faz a partida terminar.
No seu turno, o jogador tem 3 possibilidades:
- Dar uma dica (caso existam tokens de dica disponíveis) indicando a um outro jogador que cartas que ele possui são de uma cor ou número específico;
- Descartar uma carta, o que permite recuperar um token de dica e pegar uma carta nova no baralho;
- Jogar uma carta, tentando colocá-la no jogo. Se a carta estiver na ordem certa, é um acerto, ótimo, se ela não estiver na ordem certa é um erro.
O jogo é muito divertido e, jogando ao vivo, é quase inevitável que as pessoas deem dicas “proibidas”, através da ênfase que dão na voz: “essa é branca, e ESSA AQUI também é branca”. Esse é um dos jogos que funciona melhor no BGA, pois o jogo te obriga a ser honesto nas dicas e, por outro lado, ele não força a memória (as dicas recebidas ficam marcadas para o jogador que as recebeu).
Se jogar exatamente como a regra manda, é bem difícil vencer. Uma dica legal é convencionar sempre incluir cartas por um lado da mão e descartar pelo outro pois assim fica fácil todos saberem quem precisa de uma dica mais urgente. Com meu grupo, funciona bem.
6 – Fibonachos (2023), Jordy Adan – Galápagos (2023, Lançamento Mundial)
Cartógrafos foi um jogo que pegou não só o mundo, mas a cena brasileira inteira de surpresa. De repente o Brasil tinha um indicado para o Spiel des Jahres. E não, não era de um designer já consagrado, como o Sérgio Halaban, mas de um autor jovem que estava praticamente estreando como designer (Cartógrafos era o segundo jogo publicado em seu nome), Jordy Adan.
A indicação fez bem ao Jordy, que passou a ter muitas oportunidades de trabalho. Só o Cartógrafos já gerou uma expansão (Heróis) e diversos pacotes de mapas extras. E, nos últimos tempos, Jordy se uniu com o Renato Simões (do estúdio Geeks & Orcs) para gerar jogos de carteado, de onde saiu o Fibonachos.
Fibonachos é um jogo de vaza onde tanto as cartas como a quantidade de vazas ganha tem mecânicas ligadas a sequência de Fibonacci (onde o próximo número da série é a soma dos dois anteriores: 1,1, 2, 3, 5, 8…). A inclusão dos nachos no nome, além de sonora, dá alguma coisa objetiva para que a arte do jogo não fosse totalmente abstrata.
O baralho do jogo é formado por 3 naipes com 15 cartas (de 1 a 14, com duas cartas 1). As cartas são distribuídas no início do jogo e, no início de cada vaza, uma carta de pontuação é sorteada.
O primeiro jogador joga uma carta qualquer e os demais precisam seguir o naipe, caso possuam cartas dele, mas podem jogar carta de qualquer outro naipe caso não possuam. A vaza é ganha por quem jogar a maior carta do naipe puxado.
O jogo não possui um naipe de trunfo, mas as cartas que seguem a sequência de Fibonacci são chamadas de “Fibonachos” e se tornam trunfos se pelo menos duas delas forem jogadas na mesma vaza. Nesse caso, vence a vaza quem jogou o maior Fibonacho, independentemente de ser ou não da cor do naipe jogado.
Ao final da mão, cada um conta os pontos que obteve nas cartas de pontuação. Se o total for igual a um número de Fibonacci, a pessoa pontua o próximo número da série (exemplo: se ela fez 8 pontos, na verdade ela vai pontuar 13, que é próximo número da série). Ao final da terceira rodada, quem tiver mais pontos é o vencedor.
Fibonachos é um bom jogo de vazas que foi criado dentro da onda de carteados. O jogo tem ideias boas, mas acredito que está em um mercado muito concorrido onde acredito que tenham jogos melhores. Ainda assim, como eu sou um inveterado jogador de vazas, gosto muito dele.
5 – Velonimo (2020), Bruno Cathala – Versão Brasileira: Paper Games (2022)
Apesar do nome remeter a espanha, Bruno Cathala é um designer francês que tem inúmeros jogos famosos. Seus maiores destaques, na minha opinião são os dois lançados pela Days of Wonder: Five Tribes e Yamatai, além de claro, o incrível Kingdomino, vencedor do Spiel de Jahres de 2017. Seu lema é “Jogar é se comunicar de um modo diferente”.
O tema de Velonimo é uma corrida de bicicletas, como o Tour de France, só que aqui, a corrida é entre bichos, pegando um pouco da fábula da Lebre e a Tartaruga. Mecanicamente, o jogo é um climbing e o seu objetivo é se livrar das cartas da mão. O baralho é formado por 4 naipes de 1 a 7, onde 1 é a tartaruga (o animal mais lento) e o 7 é o leopardo. Além desses, existem as lebres, que são uma espécie de trunfos.
A ideia do jogo é que, assim como no ciclismo, você anda mais rápido quando anda em grupo. Então, se você junta cartas do mesmo animal ou da mesma cor, cada uma conta como se valesse dez e a isso você ainda soma o valor da menor carta do grupo (por exemplo, 4 tartarugas valem 41, uma tartaruga, um hipopótamo e um leopardo verdes valem 31). As lebres são os solistas, elas não se juntam com ninguém, mas andam muito rápido (cada uma tem um valor diferente, que vai de 25 a 50).
Na sua vez, você escolhe um grupo de cartas que vença o grupo jogado anteriormente ou passa. Vence a rodada quem se livra das cartas primeiro.
Ainda existem dois detalhes importantes: as tartarugas, quando são jogadas, permitem que o jogador force uma troca de cartas com um adversário. Além disso, quem está liderando o jogo fica com a carta que representa a “camisa de cenouras e ervilhas”, que basicamente é um bônus de pontos, a ser usado uma vez por rodada.
O jogo normalmente é jogado em 5 mãos, com um valor crescente (a primeira rodada vale um ponto, a segunda 2 etc.). Esse esquema permite que todo mundo chegue com alguma chance e o final quase sempre é bem equilibrado.
Acho Velonimo um climbing de entrada muito bem implementado. As sacadas temáticas dão um toque bem legal no jogo, lembrando os ataques e contra-ataques das equipes e dos solistas numa montanha. O jogo é simples o suficiente para ser apresentado a jogadores casuais, que rapidamente conseguem sacar as malícias do jogo e se divertir. Sempre levo ele para viagens com a família e amigos e ele sempre é jogado mais de uma vez.
4 – Encantados (2016), Fel Barros e Shea Parkes – Ace Studios
Apesar de ser conhecido como o líder do “Lobby do Carteado”, Fel Barros tem vários jogos de tabuleiro em seu currículo de designer. Acredito que o mais famoso seja o “Space Cantina”, mas provavelmente o mais festejado pelos experts é o “Narcos”. Porém, acredito que ele seja mais famoso pelos seus vários carteados. Dentre eles, o que eu mais gosto é o Encantados.
Encantados é um jogo claramente baseado na família de jogos do buraco e do pif-paf. Ele foi baseado em jogo chamado Plato 3000, do Shea Parkes, que veio como brinde na big box do Glory to Rome. Fel teve a ideia de remodelá-lo para o conceito de fantasia medieval e procurou o Shea Parkes para propor a parceria. Este gostou da ideia e assim temos o Encantados.
Nesse jogo, você recebe uma mão de cartas que se organizam em “naipes” e seu objetivo é colocar na sua área de jogo conjuntos de cartas do mesmo naipe e depois estendê-los, até ficar sem cartas na mão.
A esse conceito foram inseridos poderes diferentes a cada naipe (que no jogo, representam criaturas típicas de histórias de fantasia medieval: elfos, anões, kobolds etc.). Cada conjunto na mesa gera vantagens ou desvantagens ao jogador. Sim, existem cartas negativas no jogo (principalmente os mímicos que aqui fazem o papel de coringas). Você precisa pensar no custo-benefício de utilizá-los, mas também levar em conta que eventualmente vai poder fazer com que eles não te façam perder pontos (se você tiver um conjunto de fadas) ou repassá-los para um adversário (com a ajuda dos trolls – a escolha do poder não é mera coincidência).
Existem também as “canções”, que são cartas que funcionam mais ou menos como os 3 vermelhos na canastra. Elas não formam jogo, são colocadas a parte e, além de concederem algum poder, podem ou não valer pontos dependendo do seu jogo.
Eu adoro jogar Buraco e por isso o Encantados me agrada bastante, embora, sendo muito sincero, faça muito tempo que eu não o jogo. As partidas são rápidas e divertidas. Eu não gosto muito do take that, mas acredito que ele seja importante para equilibrar um pouco a sorte de quem recebeu poucos coringas no jogo.
Acho que Encantados é um bom jogo para apresentar para aqueles familiares viciados em Buraco, Canastra, Tranca etc. Rapidamente eles pegarão o conceito e será mais fácil mostrar outros jogos modernos depois.
3 – Lost Cities (1999), Reiner Knizia – Versão Brasileira: Devir (2016)
Já fiz um artigo falando do Knizia e de sua incrível capacidade de criar jogos que não parecem nada demais, mas que quando você coloca na mesa eles crescem absurdamente. Lost Cities é mais um exemplo da genialidade do Doutor.
É um jogo exclusivo para duas pessoas e sua premissa é muito simples. O tema do jogo versa sobre explorações arqueológicas, mas na verdade o jogo é totalmente abstrato.
O jogo possui um baralho de 60 cartas, divididas em 5 naipes (na minha edição vem um naipe extra, para um jogo maior). Em cada naipe, 9 cartas são numeradas de 2 a 10 e três cartas possuem um símbolo e são chamadas de “cartas de investimento”.
A ideia do jogo é que cada naipe representa uma possível expedição e os números das cartas representam os ganhos dela. Porém, para ser bem-sucedida, uma expedição precisa dar mais retorno que seus custos (que são definidos em 20 pontos).
Quando o jogo começa, cada jogador recebe 8 cartas. Então cada jogador se alterna em turnos. No seu turno, o jogador deve primeiro colocar uma carta na mesa, seja iniciando ou aumentando uma expedição do seu lado ou descartando uma carta no centro da mesa. A única regra é que para colocar uma carta de expedição, ela tem que ser maior do que a carta anterior. Após isso, o jogador deve comprar uma carta, seja do centro da mesa ou do baralho. O jogo prossegue assim até que alguém compra a última carta do baralho.
Ainda tem a questão dos investimentos. Enquanto nenhuma carta numerada foi jogada em uma expedição, o jogador pode jogar uma carta de investimento daquela cor na sua fila. Isso faz com que a expedição valha o dobro, para o bem ou para o mal. Até 3 cartas de investimento podem ser jogadas em uma expedição. Note que ambos os jogadores podem competir pela mesma expedição. Existem ainda um bônus: caso uma expedição possua 8 ou mais cartas, ela ganha um bônus de 20 pontos (que não é multiplicado).
O jogo então se torna uma luta encaniçada pelas cartas. Você quer começar as expedições pelas cartas mais baixas e ir crescendo, mas não quer pular cartas (porque se fizer isso, elas ficam livres para o seu adversário). Você consegue prender algumas cartas na mão, mas você também precisa correr contra o tempo, porque o baralho acaba rápido. E, se você começa uma expedição, se não conseguir completar os vinte pontos, você vai perder pontos naquele naipe.
O jogo é simplesmente sensacional. É simples, mas cheio de malícia. O fato de você jogar primeiro e comprar depois faz muita diferença, pois na maioria das vezes você gostaria de ver a carta que vai comprar antes de jogar.
Hoje em dia, Lost Cities é o meu filler preferido para jogar em duas pessoas. Não tenho como recomendar mais esse jogo.
2 – London 2ª Edição (2017), Martin Wallace, Versão Brasileira: Meeple BR (2023)
Martin Wallace é simplesmente o autor do meu jogo favorito e que, talvez não por acaso, seja o número um do BGG atualmente: Brass Birmingham (sobre o qual já escrevi aqui).
Ele também é o autor de London Second Edition, que nada mais é do que adaptação de um jogo antigo, de mesmo nome, para um card game.
Já joguei o London original, que é um jogo de controle de área mais tradicional. A segunda edição é um jogo de cartas (com alguns marcadores) que consegue de maneira brilhante captar a ideia do jogo original, mas que foca no desenvolvimento de motores e que tem o controle da miséria como uma maneira de restringir os jogadores.
Em London cada jogador é um arquiteto tentando reconstruir Londres depois de um grande incêndio (que de fato ocorreu) ao mesmo tempo que mantem a miséria sobre o controle.
O jogo adota uma visão da qual eu não gosto muito, a de que o progresso causa miséria (na verdade a miséria já existia e era muito pior, mas ela ficava no campo, longe das cidades), mas que funciona muito bem para dar equilíbrio ao jogo.
Em London as cartas representam tudo o que uma cidade grande possui: construções, parques, lojas, profissionais e a miséria. As cartas ficam disponíveis no baralho e no tabuleiro central.
Cada jogador começa com uma mão de seis cartas e no seu turno deve comprar uma carta e depois escolher uma das seguintes ações:
- Desenvolver a cidade: Isto é, colocar cartas na mesa, pagando o seu custo e descartando (no tabuleiro central) uma carta da mesma cor da que for jogada. Essa carta pode ser colocada em cima de uma carta já baixada ou abrir uma nova pilha de cartas. Isso é o principal aspecto do jogo, como veremos adiante.
- Comprar terra: basicamente isso significa pagar por uma das cartas especiais que ficam à disposição, representando os bairros da cidade. Elas dão pontos e alguma vantagem enquanto estão ativas.
- Produzir: ativar as cartas visíveis na sua área de jogo, pagando eventuais custos de ativação e ganhando os tokens de miséria por cada carta que estiver na sua mão, por cada pilha de cartas na sua área de jogo e por cada 10 libras de empréstimo que você tiver contraído.
- Comprar cartas: pegar 3 cartas no tabuleiro ou no baralho.
Ainda tem alguns detalhes de gestão de mão e das cartas a disposição, mas o jogo é basicamente isso e ele é jogado até que o baralho se exaure.
Como sempre, Wallace te obriga a fazer soluções de compromisso. Você precisa de cartas e quer produzir, mas para a produção ser eficiente, precisa estar sem cartas na mão. Você quer aproveitar ao máximo sua produção, mas não pode montar uma máquina muito grande, pois os tokens de miséria são destruidores de pontos. O dinheiro é escasso, os empréstimos sempre estão presentes (é um jogo do Martin Wallace), mas eles custam caro.
Embora o tema da Londres no início da era industrial seja absurdamente batido, London é um excelente jogo que eu acho que não recebe tanta mesa como deveria. A arte das cartas é muito bonita e sua jogabilidade é muito refinada e elegante.
1 – Abluxxen (2014), Wolfgang Kramer & Michael Kiesling, Versão Brasileira: Galápagos Jogos (2024)
Por fim, no topo dessa lista (que pode variar, sou muito inconstante nesse negócio de citar preferências de jogos), apresento o surpreendente Abluxxen, lançamento recente da Galápagos.
Abluxxen é um jogo da dupla mais famosa dos Board Games: Kramer & Kiesling, a famosa dupla K&K. Juntos, respondem pela trilogia das máscaras (Tikal, Méxica e Cuzco), Paris, Palácios de Carrara e muitos outros. Separados, Kramer tem jogos como Princes of Florence e o Pega em Seis e Kiesling responde por nada menos que o Azul.
Abluxxen é um jogo onde você joga para ficar sem cartas, mas isso não é o que garante a sua pontuação, pois esta é a diferença entre as cartas que estão na área de jogo e as que sobraram na sua mão. Bater sem cartas no jogo apenas lhe evitará perder pontos.
Seria simples se as cartas que você baixou não pudessem ser retomadas, por você mesmo ou pelos seus adversários.
No seu turno, você pode baixar uma quantidade quaisquer de cartas iguais (ou coringas). Se o jogo que você baixou tem a mesma quantidade de cartas de jogos dos outros jogadores ativos na mesa, eles serão comparados.
Se o seu for maior, você poderá decidir se quer as cartas daquele jogo para você ou não. A ideia é que essas cartas podem ser boas para combinar com outras na sua mão e fazer um jogo ainda maior na rodada seguinte. Nesse caso, o jogador que teve as cartas roubadas terá que comprar a mesma quantidade de cartas na mesa ou no baralho.
Caso você decida não pegar as cartas, o outro jogador poderá escolher entre voltar com as cartas do jogo derrotado para a mão, ou descarta-las e comprar a mesma quantidade do display.
E o jogo vai assim até que alguém fique sem cartas.
O jogo é muito simples, mas é incrivelmente diabólico. No início, você quer que suas cartas sejam roubadas, porque essa é a única forma de conseguir comprar cartas para arrumar sua mão. Não dá para ganhar jogando uma ou duas cartas de cada vez. No final do jogo, porém, você quer proteger as suas cartas já baixadas, porque elas são pontos positivos e comprar cartas no fim do jogo pode ser devastador.
Nas primeiras vezes que se joga, as pessoas demoram um pouco a entender a malícia do jogo, mas na segunda rodada todo mundo já entendeu e o jogo cresce muito. Os primeiros turnos servem para um build-up e no final todo mundo começa a baixar jogos violentos na mesa. O jogo permite muito controle para quem presta atenção nas cartas que são compradas, mas ao mesmo tempo não tem como cobrir tudo, pois você precisa arriar cartas e com isso dar oportunidades aos adversários.
Abluxxen é uma grata surpresa, um dos melhores jogos de climbing do mercado e que acredito que será sucesso por muito tempo por aqui.
Conclusão
Todos esses autores são famosos não por esses jogos que comentamos hoje, mas por jogos mais complexos ou pelo conjunto de sua obra. Ainda assim, quando se dispuseram a fazer jogos de cartas, entregaram produtos extremamente bem aceitos no mercado e alguns deles divertem milhares de pessoas há quase 20 anos.
A exceção dos dois jogos mais novos da seleção (Fibonachos e Kokopelli), todos os demais são jogos muito bem-sucedidos no mercado, com diversas reimpressões e revisões e até jogos derivados (os famosos spin-offs). Nenhum desses jogos está “out of print” no mundo, sendo relativamente fácil comprá-los no Brasil.
Essa lista nos mostra como a PaperGames teve um papel primordial na exploração desse mercado de jogos de carta modernos para o Brasil. Quatro dos dez jogos da lista foram trazidos para cá por ela e isso não é um acaso. Durante muito tempo ela reinou sozinha nesse nicho. Apenas muito recentemente a Galápagos e a Grok “acordaram” e vem lançando jogos de carta não colecionáveis de maneira mais sistemática.
Muitos jogadores não dão o justo valor a jogos de cartas. Normalmente são jogos mais casuais, que dependem um pouco de sorte e que funcionam em muitos casos como fillers, aqueles jogos que servem de aperitivo para o jogo principal da noite ou que completam a jogatina.
Acho isso muito errado. Vários dos meus melhores momentos no hobby aconteceram com jogos de cartas. E eles são uma boa fronteira a se explorar pelo nosso mercado editorial: são baratos de produzir, nós temos gráficas capazes de fazê-los com qualidade igual ou próxima ao que se faz lá fora, e há um público crescente para eles (haja vista o “Lobby do Carteado”).
E para quem acha que os jogos de carta são simples, recomendo conhecer os jogos de vaza japoneses, como Nokosu Dice, Luz ou Ghosts of Christmas. Eu garanto que você queimará bastante seus miolos para conseguir jogar razoavelmente bem.
Voltando a introdução do texto, como pudemos ver, as limitações dos jogos de carta não impediram esses designers de criaram grandes jogos, muito pelo contrário, serviram como base para 10 jogos muito interessantes e diferentes entre si, que eu espero que possam servir de base para que você comece a se aventurar nesse nicho do nosso hobby!
Ultimamente ando jogando e gostando de muitos carteados. Abluxxen é realmente excelente. Lost Cities então, acima da média. Jogos q mais estão vendo mesa na minha casa são: Abluxxen, Pescado Novo, Lost Cities, Kariba e Rebel Princess.
Ainda pretendo ter vários outros carteados, realmente estou gostando bastante.
Excelente texto Jean, já inclui 3 jogos dessa lista na minha lista de futuras compras.
Fred,
Obrigado!
O Jean faz ótimos textos, mas esse, por acaso, é meu!
Um abraço,
Eduardo
Sim, Jean enviou e antes msm de ler o autor eu fiz a postagem. Até vim aqui corrigir. Mas parabens pelo texto Eduardo. Vc escreve muito bem.
Que ótimo levantamento e tema! Não tinha me tocado que tantos autores consagrados com jogos grandes também tinham suas versões de jogos de carta…cartas essas que tem ganho um espaço cada vez maior por aqui, pelo seu valor menor e alta portabilidade. E aqui não tô falando só do famigerado carteado não. Jogos como o excelente Oh my goods! (que teria sido uma honra lhe ensinar na Covilcon, poxa! Um dos meus favoritos), o Codex Naturalis e o Sea Salt & Paper (do já citado Bruno Cathala) são excelentes para mostrar profundidade e diversão em caixas pequenas e poucos componentes.
Tiago,
Já temos motivo para ir na Covilcon do ano que vem então!! Jogarmos “Oh my goods”!
Sds,
Eduardo