Se um dia você for a Amsterdã no primeiro semestre, eu recomendo muito que você vá ao Keukenhof!
Keukenhof é um parque mantido pelo Reino da Holanda perto de Amsterdã que é simplesmente o maior jardim florido do mundo. Ele só abre durante parte da primavera (da última semana de março até meados de abril) e o que se faz lá é basicamente passear pelo parque e ver as estufas com tulipas de todas as cores possíveis e imagináveis.
Falando assim, pode parecer algo sem graça mas, acredite, não é. Mostrar fotos, como essa que coloquei acima, não é o suficiente para demonstrar a beleza das cores dessas flores. Depois de um dia lá, você sai com os olhos doendo, como se tivesse visto por horas uma tevê com a saturação desregulada. A variedade de cores e a beleza das flores é indescritível. É algo que precisa experimentado pessoalmente.
As tulipas marcam a história não só da Holanda, mas do ocidente, por terem sido o primeiro bem de consumo do capitalismo moderno a passar por ciclo de bolha econômica. Em meados do século XVII a rica sociedade mercantil de Amsterdã se apaixonou por essas flores, oriundas do oriente médio e que eram trazidas pelos navios de sua companhia das Índias e acabou vivendo um sensacional ciclo de boom e bust como o mundo nunca tinha visto até então.
Além de servir como estudo de caso para diversas áreas da economia, a mania das tulipas agora serve como tema de um jogo de tabuleiro moderno. Tulip Bubble é um jogo do designer japonês Kouyou, produzido em 2015 e que foi este ano trazido para o Brasil pela Galápagos em 2023.
Esse artigo servirá a um duplo propósito: além de apresentar o jogo em si e apresentar minha opinião sobre o mesmo, decidi aproveitar o gancho do tema para discutir a evolução crescente do custo dos jogos de tabuleiro no mercado nacional e o que eu acho que deve acontecer em relação a isso num futuro próximo. Será que estamos numa bolha especulativa e haverá um crash, sobrando jogo a preço de banana para todos os lados?
Porque as bolhas econômicas acontecem?
Toda bolha começa com uma situação real.
A Holanda do século XVII é o verdadeiro berço do capitalismo moderno. Sua aristocracia não era formada por nobres donos de terra, mas por comerciantes que criaram sua riqueza a partir do nada.
Vivendo numa cidade, Amsterdã, que praticamente funcionava como uma cidade estado, criou-se ali um ambiente de liberdade econômica e individual que atraíram algumas das melhores mentes da europa para ali viver e isso ajudou a desenvolver as instituições que fizeram o mercado livre florescer.
Numa sociedade onde a nobreza não era medida pelo seu berço, mas por seu mérito, tornou-se importante apresentar símbolos da sua bem-aventurança para obter respeito. E, entre outras coisas, possuir jardins decorados por lindas tulipas, flores que eram trazidas dos entrepostos com o Império Otomano, se tornou uma forma bastante popular de se mostrar bom gosto e refinamento.
Não é que todas as tulipas de repente se tornaram caras. As tulipas que fizeram essa história foram de um tipo muito específico, criada por uma deformação das flores originais, atacadas por um vírus que gerava listras rajadas nas flores.
A genética ainda não era muito bem entendida, as pessoas não entendiam exatamente o que causava essa variação, porém elas percebiam que isso não se repetia através do processo normal de reprodução mas, quando eram tiradas mudas da planta, as flores mantinham a característica.
Como o processo de trazer as flores do oriente médio era demorado e caro, e como Amsterdã era um berço capitalista, as pessoas começaram a especular no comércio das flores, fazendo contratos futuros de compra e venda de flores que não estavam ainda prontas, mas que deveriam ser entregues numa determinada data.
No momento mais crítico, quando havia muito mais pessoas comprando e vendendo flores apenas para especular com seus preços e não por um desejo real de possuí-las em seus jardins, os preços foram a estratosfera e, quando esses preços não puderam encontrar compradores finais (aqueles que realmente queriam as flores), a casa caiu.
Esse é o processo de toda bolha. Existe uma demanda real, que gera a valorização, isso leva a muita gente a entrar no mercado para tentar ganhar dinheiro com a especulação e, quando o gap se elimina, seja porque houve uma superprodução ou simplesmente porque a moda passou, os preços despencam.
Especulação financeira em forma de Board Game
A melhor coisa de Tulip Bubble é que ele reflete muito bem o mecanismo que causa as bolhas econômicas.
O jogo possui até 10 rodadas e todo mundo sabe que a bolha vai estourar um dia. Só não sabe quando (durante o setup, colocamos a carta de evento do estouro da bolha entre as três últimas do jogo) e o objetivo dos jogadores é tentar ganhar o máximo de dinheiro possível especulando com os contratos de compra e venda das flores antes que a bolha estoure.
O jogo possui uma segunda forma de vencer que é, antes de ocorrer a bolha, conseguir comprar a Tulipa Negra. Para isso, você precisa acumular, no mínimo 120 dinheiros (se mais de um jogador tiver esse dinheiro, vence o que tiver mais dinheiro).
Cada rodada é bem estruturada em 4 fases: evento, fase de venda, fase de compra e manutenção.
O tabuleiro é organizado ao redor de uma tabela de preços e da ofertas de flores. Existem flores de 3 cores diferentes e que são classificadas em três tipos diferentes cada, sendo o tipo A o mais caro e o tipo C o mais barato. Essas duas características definem o preço da flor no mercado.
Os preços das flores são alterados por duas coisas: pelos eventos, que são revelados no início de cada turno e pela quantidade de flores de cada cor que sobram ao final da rodada. As que mais sobram baixam de valor e as mais procuradas aumentam.
Durante a fase de venda, cada jogador pode vender quantas flores quiser, ao preço de mercado. Se faz uma venda que atende a um colecionador aberto, ganha um bônus além do valor das flores.
Durante a fase de compra, cada jogador coloca tokens sobre as flores que gostaria de comprar. Após todos colocarem seus tokens, resolve-se as compras. Se há apenas um único interessado por um determinada flor, ele compra pelo valor da tabela. Se há mais de um interessado, acontece um leilão com o preço mínimo sendo pelo um a mais do valor da tabela. Nessa fase há um efeito interessante, a diferença entre o valor base e o dinheiro efetivamente pago é distribuído entre os demais participantes do leilão (o que motiva as pessoas a especularem).
Na hora de pagar, o jogador pode pagar à vista ou financiar o contrato, colocando o dinheiro do banco sobre a flor a sua frente, junto com um dos seus tokens. O financiamento pode ser pago a qualquer momento, inclusive durante uma venda, mas não pode ser feito com o dinheiro da própria venda se é uma venda feita para um colecionador. Essa decisão de financiar em troca de um tokens de ação é uma das coisas mais legais do jogo.
E esse mecanismo acontece então por várias rodadas até que saia o evento de estouro da bolha ou que alguém compre a Tulipa Negra.
Quando a bolha estoura, todas as flores valem zero e no final ganha quem tem mais dinheiro.
Análise
Eu gostei muito de Tulip Bubble. O jogo consegue realmente simular a sensação de “dança das cadeiras” que é especular num ambiente de catástrofe iminente. A sua decisão de quando vender e de quanto arriscar manter nas rodadas finais é crucial para o resultado do jogo.
Se o jogo tem um problema, é o fato de depender muito de quanto os jogadores são ou não avessos ao risco. Se ninguém for para o confronto e os leilões não se desenvolverem, o jogo fica meio chato.
Obviamente os eventos não são totalmente aleatórios pois eles vem de um baralho e conhece-se a distribuição das cartas. Se o jogo for bem explicado, todos jogam sabendo o que já aconteceu e o que ainda pode acontecer. Porém, o jogo não fica totalmente previsível, pois os valores das flores mudam muito rápido, é difícil ter o controle total da situação.
A produção do jogo é muito bem feita, as cartas são lindas, os biombos são de boa qualidade. As moedas podiam ser melhores, de metal talvez, mas provavelmente tornaria o jogo muito mais caro.
Se você é um jogador de euros “raiz”, que odeia aleatoriedade e lidar com o acaso, esse não é jogo pra você. Não crie house rule de jogar com o evento seguinte aberto, isso vai estragar a brincadeira. Se esse tipo de situação não lhe agrada, existem outros jogos para você.
Estamos vivendo uma bolha no mercado de board games?
Um dos assuntos mais populares (e, ao mesmo tempo, mais chatos) que temos nos grupos de board games é a discussão sobre preços.
É fato que os jogos são brinquedos relativamente caros e que o seu valor nominal vem aumentando ao longo dos anos. Mesmo com o mercado crescente e com o número de lançamentos aumentando ano após ano, o tão esperado efeito de escala não aparece e os preços só aumentam. Porque será?
Isso tem algumas explicações: em média, os jogos lançados hoje possuem arte e produção muito superiores ao que se produzia dez anos atrás. Junte isso aos problemas que tivemos na cadeia de global de produção nos últimos anos e você percebe que a economia de escala foi consumida por investimentos em produções melhores e custos logísticos crescentes.
Se os preços não caem, e a produção de títulos só aumenta, será que estamos entrando num ciclo de bolha? Será que vamos chegar em um momento onde os colecionadores estarão com estantes tão entupidas de jogos que dirão “não, obrigado” ao novo jogo imperdível dessa semana?
Que fique bem claro: eu não sou um insider do mercado, tudo que eu vou falar aqui é mera especulação. Estou juntando informações que eu consigo pegar nas entrelinhas de entrevistas que acontecem no Covil e em outros sites e juntando com o meu entendimento de economia e bom senso para dar uma opinião aqui. Não sou o dono da verdade e gostaria de saber os argumentos de quem não concorda com o que vou dizer.
Eu não acredito que estejamos numa bolha. Nós ainda não temos tamanho para isso e também não temos muita gente comprando e vendendo jogos apenas com o objetivo de obter lucro.
Sim, existem alguns vendedores “alternativos”, vendendo jogos importados (e até nacionais) na Ludopedia, mas eles não me parecem ter um movimento ou uma capacidade de especular no mercado. Alguns jogos que são raros ou esgotados eventualmente alcançam valores muito altos num leilão ou aparecem oferecidos a preço de ouro, mas esses são casos isolados.
Que eu saiba, não temos especuladores comprando e vendendo de outros especuladores. A grande maioria de quem compra os jogos são jogadores ou colecionadores, gente que pretende usar o jogo, ainda que seja por algum tempo. Não há bolha sem especulação e eu diria que não temos movimento especulativo significativo.
O que temos é gente com dinheiro pagando caro por alguns jogos raros. Os jogos de catálogo que não sejam hypados ficam sobrando a preços abaixo de custo na Ludopedia. Quanto você consegue por um Carcassonne?
Um outro motivo para que o ganho de escala não chegue aos consumidores brasileiros é que, dado o tamanho do nosso mercado e a preferência do público por lançamentos, as editoras aprenderam a trabalhar com tiragens muito pequenas. O Hobby de Jogos de Tabuleiro Modernos é muito baseado no que o Tom Vasel chama de “culto do novo”. O ciclo de vida dos jogos é cada vez mais rápido. É mais ou menos o que aconteceu com o cinema. Antigamente as salas eram gigantescas e os filmes eram lançados e ficavam várias semanas em cartaz. Hoje em dia, são muitos lançamentos, mas poucos ficam mais do que duas ou três semanas passando. E os cinemas passaram a ter muitas salas pequenas em vez de poucas salas grandes.
Então, as editoras produzem o mínimo que podem, vendem no preço do lançamento para os consumidores que são menos sensíveis a preço e gerenciam o que sobra para vender com desconto nos meses seguintes. Ainda existem promoções nas black fridays, mas não é tão fácil achar muito jogos pela metade do preço de custo, como acontecia há algum tempo atrás. É um ou outro. Fato: as editoras e as lojas aprenderam a lidar com o mercado brasileiro. As que não aprenderam, já não estão mais entre nós.
Antes que alguém reclame, não vou apenas passar pano para as editoras, elas não tem nada de boazinhas. Alguns jogos, os famosos evergreens (TTR, Carcassonne, Azul, entre outros) já pagaram muitas vezes seus custos de design, são continuamente reimpressos e seus preços não baixam nunca. Sempre que eu ouço uma entrevista onde vejo algum representante de editora chorar que não tem margem, eu me pergunto sobre esses jogos… Gostaria que eles fossem sinceros em relação a esse tipo de assunto, mas infelizmente ganhar dinheiro no Brasil é visto quase como um pecado, então eles (nem eles, nem ninguém) nunca vão dizer que estão ganhando rios de dinheiro, mesmo que estejam.
Resumindo, eu não acredito em um crash. Este talvez já tenha até ocorrido, pois houve uma mortandade grande de lojas e editoras. Os sobreviventes aprenderam com a fase do pioneirismo do mercado e são os que estão por aqui agora. O maior risco que enxergo é o de chegarmos em um momento onde o mercado fique estagnado, crescendo muito pouco ou diminuindo. Acho que esse cenário não é muito difícil de ocorrer, infelizmente.
Pessoalmente, eu preferiria que lançassem menos e melhores jogos e que eles saíssem com maiores tiragens e que tivessem um ciclo de vida maior. Infelizmente, não acredito que isso venha a acontecer no futuro próximo. É exatamente o contrário do que vem acontecendo.
Conclusão
O que cabe a nós, consumidores, nessa situação? Temos o que fazer?
Acho que isso varia muito, depende do que cada um realmente pensa mas, pessoalmente, eu venho tentando escolher melhor os jogos que compro. Não preciso ter tudo que sai, nem tudo de um determinado autor, etc. Eu quero ter os jogos que eu vou jogar regularmente e uma variedade de jogos que se complementem, que ofereçam desafios diferentes. E é exatamente nesse ponto que vejo um problema nos lançamentos atuais: os jogos estão muito parecidos entre si. Será que precisamos mesmo de mais um jogo e alocação de trabalhadores com salada de pontos?
E com isso eu volto ao jogo central do review do hoje. Tulip Bubble é um jogo econômico, baseado em leilão e especulação financeira, que foge do padrão da maioria dos jogos lançados atualmente e que entrega uma experiência bem diferenciada. Para mim, sua compra se justifica porque, além de ser um bom jogo, no mercado atual não tem muitos concorrentes claros. Modern Art, talvez?
Eu não sei como foram as vendas desse jogo, espero que tenham sido boas e que isso incentive a Galápagos e suas concorrentes a buscarem jogos diferenciados.
O lançamento de Tulip Bubble foi, nesse sentido, um passo na direção certa!
Excelente paralelo traçado. Imagino que o mercado vez ou outra “erra” em alguns jogos que empacam por não estarem tão hypados… (as vezes é lançado em um momento inoportuno talvez…) e infelizmente os jogos de tabuleiros estão cada vez mais parecidos com o streaming de filmes/seriados/documentários… a diversidade é tão grande que muitos jogos bons passam desapercebidos por não estarem no hype, e sempre bate aquela dúvida o que vou jogar… e acaba que são colocados na mesa os “tradicionais” pois estes não tem erro na hora de apresentar… vou escolher esse filme por que adoro esse ator… etc. O mercado de jogos deu um salto de qualidade e isso é fruto dessa concorrência e diversidade não podemos negar. Creio que ainda existe muito mar a ser desbravado e que mesmo nos dias atuais os board games ainda são novidades para muitos. Tem muito trabalho pela frente!
Muito bom o artigo! Sou relativamente novo no hobby e no momento estou na contra mão dessa onda de “culto ao novo”. Passo longe de lançamentos (com raras exceções) e compro apenas jogos já muito bem estabelecidos, que sobrevivem bem ao tempo. Como você disse, só quero ter na minha estante jogos que me empolgue muito só de pensar neles, sejam euros, ameritrash ou party. Só fico com a nata. Jogo “só bom” eu to vendendo.