Um dos melhores grupos de WhatsApp do qual eu participo se chama “Cassino do BGA”. O objetivo dele é facilitar a montagem de mesas para partidas assíncronas na plataforma. O grupo é muito eficiente nisso e o pessoal que joga ali é bem legal. Existe uma grande oferta de partidas e torneios, o nível do pessoal é relativamente alto (alguns são jogadores muito bem ranqueados em alguns jogos) e o clima entre os membros é bem cordial. Eu praticamente só jogo BGA com amigos pessoais e em mesas ou torneios oriundos desse grupo (a exceção é quando eu tenho uma recaída e tento minha sorte na área do Lhama).
Um dia desses, uma jogadora do grupo trouxe uma questão interessante: ela estava jogando uma partida de Carcassonne e, durante a partida, fez o que jogadores fortes de Carcassonne fazem: “prendeu” os bonecos do adversário no tabuleiro, colocando tiles que dificultavam suas construções. Sem ter como recuperar seus bonecos enquanto ela aproveitava as pequenas oportunidades de pontuação imediata, o adversário, no auge de sua frustração, reclamou da forma que ela jogava no chat. Ela ficou perplexa com aquilo e perguntou no canal o que achávamos disso.
Corta a cena para uma situação doméstica.
Eu e minha esposa costumávamos jogar o Carcassonne pelo app quando estávamos no restaurante esperando os pedidos, ou no aeroporto esperando um avião, em qualquer situação desse tipo.
No início, cada um ficava construindo as suas coisas, as pontuações eram altas e ela vencia com frequência. Minha esposa não é exatamente o que podemos chamar de uma “boa vencedora”, ela fica toda pimpona, começa a fazer olhares condescendentes e (o que é o pior de tudo), faz dancinhas da vitória (mesmo antes do jogo acabar).
Confesso que isso me irrita um pouco. Embora eu não seja um grande jogador de Carcassonne, eu já tinha uma noção das técnicas de invasão e sabotagem e resolvi usá-las contra ela nessas partidas.
Fomos jogar e, lá pelo meio do jogo, botei um boneco numa cidade gigante que ela estava montando apenas para dividir os pontos e deixei pra lá, fui tratar de outra coisa. Ela percebeu que não teria vantagem em completar a cidade, viu que eu fechei a chance dela invadir a cidade de novo e aí ela não se aguentou “Por que você fez isso? Isso é sacanagem, vai jogar seu jogo!”, sem entender que o meu jogo era justamente evitar que ela fizesse muitos pontos.
Resultado, ganhei a partida por uns 30/40 pontos, mas perdi a parceira (não na vida, mas no Carcassonne). Nunca mais ela quis jogá-lo.
Nesse texto, vamos avaliar como o Carcassonne, um jogo aparentemente inofensivo e familiar muda totalmente de natureza quando jogado em 2 pessoas, vamos entender porque jogos entre duas pessoas normalmente são mais “agressivos” do que os com mais jogadores e discutiremos como lidar com situações onde o adversário talvez não tenha o mesmo viés competitivo que você.
Puzzle em forma de jogo moderno
Carcassonne é uma pequena cidade situada no sul da França, conhecida por suas belas muralhas e por servir a quem a visita quase como uma máquina do tempo para a idade média. Dentro de suas muralhas, além de hotéis e restaurantes, temos inúmeras tavernas, e lojas com diversos artigos de inspiração medieval.
Situada no sul da França, a Carcassone medieval foi um lugar especialmente importante durante a Cruzada Albigense, um movimento liderado pelo Rei da França contra os Cátaros, que eram uma espécie de dissidência do cristianismo tradicional. Os Cátaros basicamente eram dualistas, eles entendiam que Deus, sendo bom, não era responsável pela existência do mal. Isso seria responsabilidade do Demônio, que existiria, na opinião deles, em oposição a Deus, sendo o responsável pela criação de toda matéria e por isso todo o mundo material estaria associado ao pecado.
Essa visão teológica batia de frente com a interpretação da igreja católica e eles logo foram declarados hereges. O rei da França, sempre precisando de recursos para financiar suas guerras, apoiou a Igreja e perseguiu os Cátaros, que tiveram sua queda final justamente em Carcassonne, em 1209, quando a cidade, cercada pelas tropas reais, finalmente caiu e todos os seus líderes foram condenados, mortos e tiveram seus bens confiscados pelo monarca.
No mundo dos jogos de tabuleiro, porém, Carcassonne é um jogo criado por Klaus-Jurgen Wrede e, na minha opinião, é uma verdadeira obra-prima do design de jogos modernos.
O autor usou a ideia do quebra-cabeças para criar um jogo que representa uma espécie de mapa da região do Sul da França, onde diversas estruturas (cidades muradas, estradas, mosteiros e campos) vão sendo formadas e povoadas pelas peças, colocadas uma a uma, pelos jogadores.
As peças do quebra-cabeça não são aleatórias, são 72 peças divididas em 24 tipos diferentes (na verdade, são 19 padrões, mas as peças de cidade podem ou não ter um brasão, que muda a pontuação). Os bons jogadores sabem essa distribuição de cabeça e contam as peças que já apareceram, de modo a melhorar as suas chances.
Você começa o jogo com a peça inicial na mesa, uma peça na mão e alguns meeples da sua cor a sua disposição (são sete, o oitavo serve apenas para marcar a pontuação). Na sua vez, você precisa colocar o tile que está na sua mão em jogo, combinando-o com as demais peças que já estejam colocadas sem criar coisas que não façam sentido (como se fosse um quebra-cabeças) e, se quiser, colocar o seu boneco em uma das estruturas representadas na peça que acabou de colocar. Se colocar na cidade ele é um cavaleiro, se colocar na estrada é um ladrão, se colocar no mosteiro é um monge e se colocar no campo é um fazendeiro (o fazendeiro, por convenção, sempre é colocado deitado, para não confundir com os demais).
Quando a estrutura em questão for completada (por exemplo, quando uma cidade fica totalmente murada, ou um caminho começa e termina em uma cidade ou encruzilhada) a estrutura é pontuada e os meeples presentes nela voltam para o jogador. Apenas o jogador que tiver o maior número de bonecos na estrutura ganha os pontos (se houver empate, todos os jogadores empatados ganham os pontos).
Em tese, você não consegue entrar numa estrutura que já tenha um boneco de um outro jogador, mas é possível “invadi-la” criando uma estrutura ao lado e juntando-as antes que elas se fechem. Os campos são fechados apenas ao final do jogo (verificam-se os campos que estão cercados e quem tem mais fazendeiros em cada campo ganha pontos por cada cidade completa no mesmo).
Na imagem acima eu mostro um exemplo de invasão. O jogador vermelho colocou um fecho de cidade ao lado de uma cidade dominada pelo jogador verde na esperança de invadi-la depois com o tile de cidade triangular.
Ao final do jogo verificam-se as estruturas incompletas e elas são pontuadas (normalmente valem menos do que se fossem completadas – principalmente as cidades), e são verificados os campos, que só pontuam neste momento (cada campo rende 3 pontos por cidade completa em seu espaço para o jogador que o dominou).
E isso é o jogo. Mas é só o início. Desse aparentemente simples conjunto de regras surge um jogo bastante profundo, que recompensa quem conhece a distribuição dos tiles, presta atenção em tudo que já saiu e que consegue tomar decisões baseadas nas probabilidades dos tiles que restam. E que, quando é jogado em duas pessoas, se torna uma batalha feroz.
Briga de Foice no Escuro
Carcassonne é um jogo extremamente popular e mesmo 23 anos depois de ser lançado, continua sendo oferecido nas lojas, seja na versão original, versões comemorativas, Spin-offs temáticos (como Carcassonne Star Wars ou Amazônia) e inúmeras expansões.
Jogado de forma casual, Carcassonne é um jogo familiar, divertindo pessoas de qualquer idade. As regras são rapidamente explicadas e cada um terá seu momento de brilhar, mesmo que não vença o jogo. Isso traz a impressão a boa parte dos jogadores que Carcassonne é um jogo bobo, dependente de sorte, e que ele não merece a popularidade que possui.
Ledo engano. O jogo possui uma imensa complexidade que não aparece quando jogado de forma casual.
Sim, existe um pouco de sorte, mas muito menos do que as pessoas acham. Lembre-se que, em duas pessoas, metade dos tiles virá para a sua mão. Além disso, o bom jogador sabe que não pode contar apenas com a distribuição das peças, cabe a ele criar as situações que tornarão a vida do adversário mais difícil.
O seu principal recurso do jogo são os meeples. Você precisa tê-los no tabuleiro para pontuar, mas enquanto a estrutura onde eles estão não se completa, eles ficam presos no tabuleiro. Para aumentar a pontuação, você precisa fechar as construções o mais rápido possível para poder colocar seus bonecos em um novo ciclo de pontuação. A Estratégia do jogo está basicamente associada à forma como você vai comprometer os seus meeples.
Ao mesmo tempo que você quer guardar pelo menos um meeple na mão para aproveitar situações de pontuação rápida (fechar uma cidade de dois tiles ou uma pequena estrada), você não quer deixar o seu adversário criar uma vantagem inalcançável nos campos, que muitas vezes mudam o destino do jogo. Lembre-se que os bonecos que vão para os campos nunca mais voltam para a sua mão.
Então o jogo se torna uma batalha pelo controle dos meeples e pelas possibilidades de pontuação. Para ser competitivo em Carcassonne, você vai precisar lembrar dos tiles e vai precisar fazer contas.
A natureza dos jogos 1×1
Dois executivos que estavam na África em viagem de negócios e resolveram fazer um safári. Munidos de guias, carregadores, rifles, binóculos e jipes, eles foram caçar em território de leões. Mas estavam tão confiantes que se distraíram e se distanciaram do acampamento. De repente foram surpreendidos por um enorme leão, que começou a correr atrás deles. Como não tinham prática, não dava tempo de preparar os rifles e o único jeito era sair correndo. Pernas, pra que te quero. Eles correndo o mais rápido que podiam, e o leão atrás, aproximando-se cada vez mais. Até que um deles, ofegante, começou a se lamentar:
“Não adianta, eu vi um documentário na TV a cabo National Geoghaphic, mostrando que o leão é mais veloz do que os homens! Nós não vamos conseguir correr mais do que ele!”
“E quem disse que eu estou preocupado em correr mais do que o leão?” – respondeu o outro executivo. – “Só preciso correr mais do que você!
Essa piada reflete a situação do jogo entre dois jogadores. O jogo é apenas o cenário onde a batalha ocorre. Seja fácil ou difícil, com mais ou menos regras, ele é o que é para todos os jogadores. Num jogo de duas pessoas, você não precisa dominar o jogo totalmente para vencer. Você precisa apenas ser um pouquinho melhor que seu adversário.
Num jogo de quatro jogadores, não faz muito sentido bloquear os adversários, a menos que isso seja apenas um efeito colateral de uma ação que está lhe ajudando a desenvolver o seu jogo. Uma ação puramente defensiva na verdade ajudará mais aos adversários que não estão envolvidos na situação do que a você mesmo (que perdeu uma ação para atrasar um adversário em comum a todos os outros 3). Jogadas desse tipo talvez sejam úteis no fim do jogo, quando você precisa controlar um jogador específico, mas são situações circunstanciais.
No jogo 1×1, a coisa muda de figura. Só existem duas pessoas jogando, então todo ponto que o adversário não faz é um ponto a menos que você precisa fazer. A jogada defensiva passa a ter muito mais valor, pois ela te ajuda a manter o controle do jogo.
Muita gente não gosta de jogos 1×1 justamente por causa dessa situação de confronto direto, mas acaba sendo a melhor forma de avaliar quem é o melhor naquele jogo específico, porque os jogos com mais jogadores normalmente envolvem mais “caos” (efeitos não considerados pelos autores das ações quando as executam). Mesmo em jogos de informação completa o resultado de uma partida pode ser decidido porque um jogador fez uma ação fraca que facilitou a vida do jogador seguinte, sem que os outros dois adversários nada pudessem fazer algo para evitar isso.
Qual é o seu objetivo?
O Hobby de Board Games é sobre jogos, mas não é, necessariamente, sobre competições. A competitividade é um dos fatores que envolvem os jogos, mas o hobby é mais do que isso. É também um estilo de vida, uma forma de reunir as pessoas e de passar o tempo.
Por isso, é importante entender o contexto em que se está jogando e, dentro do possível, ajustar o seu nível de competitividade para a situação.
Acredito que isso seja uma questão muito pessoal. Talvez quem está me lendo não concorde com nada do que vou dizer aqui em relação a isso. Eu mesmo não tenho certeza se consigo ser 100% coerente com o que estou dizendo, mas acredito que tentar seguir esse caminho ajude a manter o meu ecossistema de parceiros mais saudável.
Num cenário onde as pessoas estão ali pela competição, sinceramente, isso não é importante. Competições são tensas, você vai ficar sob pressão e se não aprender a lidar com isso, não vai ganhar de ninguém. Se você não suporta um ambiente pesado, mas gosta de jogos, busque outras formas de aproveitá-los. Os campeonatos talvez não sejam a sua praia.
Num cenário mais casual, acho que a questão da experiência deve ser levada em conta. Se você está jogando com o seu grupo de amigos, tão cracudos quanto você, vale tudo. Agora, se você está jogando numa mesa de família com seu pai e seus filhos, é melhor dar uma maneirada. Se você não consegue, escolha jogos onde a sorte ou a simplicidade do jogo permita a eles alguma chance de competir. Apenas uma pessoa vai ganhar, mas o objetivo é todo mundo se divertir.
Nos dois casos que eu contei no início do texto, a razão do conflito estava na diferença de expectativa dos jogadores.
No primeiro caso o adversário da minha colega esperava um jogo casual e ela entrou com a faca nos dentes, o que o deixou numa situação desagradável (embora nada justifique ele mandar uma mensagem malcriada reclamando da adversária, que não estava fazendo nada errado). Eu não sei se o jogo foi na arena ou uma partida amistosa, mas ao pegar uma adversário com mais do dobro de ELO, o que ele esperava?
No caso entre eu e a minha esposa, o que era um simples passatempo para esperar a comida acabou se tornando uma competição. Eu não sei se eu errei em aumentar o nível do meu jogo, uma vez que minha esposa já sabia jogar e me vencia com alguma frequência, mas o fato é que eu estraguei o passatempo.
Ela não quis aprender aquelas táticas para me contrapor, ela viu aquilo quase como um estraga prazeres (ela adora jogos de paciência, de ir resolvendo problemas – alguém sabotar o que ela está fazendo é uma ideia que lhe faz muito mal). Eu conheço ela o suficiente para ter pensado nisso, mas o fato é que aquela “dancinha da vitória” me irritava!
Pensando bem, o melhor que fizemos foi parar de jogar Carcassonne no almoço e usarmos o tempo para conversar!
Legal Eduardo, texto bem interessante mesmo.
Meu nome é Éverton, falo de Curitiba e não tenho redes sociais, com exceção ao instagram @conexaoffline que visa conectar pessoas através dos jogos, principalmente pais e filhos, independente da idade.
Quando eu for ao RJ, vou pelo menos uma vez ao ano, se topar, marcamos uma jogatina, já que vi no resumo ao final do texto que você ‘vive reclamando que não tem parceiros para jogar’ rsrsrs.
Abraço
Oi Everton!
Quando vier ao Rio por favor me avise e nós combinamos de jogar lá na GOB, que é a luderia que eu frequento!
Considere tambem ir a Covilcon! Vale muito a pena!
Obrigado pelo feedback!
Um abraço,
Eduardo
Muito bom!!
Eu gosto muito de jogos para 2, já que nesse nosso hobby é difícil arrumar gente pra jogar com frequência, rsrs… SW Rebellion e 7W Duel são meus preferidos no momento!