Poucos jogos chegam ao mercado com o hype com que Ark Nova foi agraciado. A primeira vez que ouvi sobre esse jogo foi nada menos que o Tom Vasel considerando que ele seria o novo Top #1 da sua lista de melhores jogos de todos os tempos. Wow!
O jogo é um sucesso tremendo de público e crítica, tendo recebido diversos prêmios e chegado ao 4o lugar no ranking geral do BGG.
No futebol brasileiro existe uma máxima que diz “em time que está ganhando não se mexe”. Aparentemente o pessoal da Feuerland Spiele, resolveu não levar isso muito a sério. No dia 31 de março de 2023, Bastian Winkehaus, um dos editores do jogo, postou uma mensagem no BGG onde avisava que a editora realizou duas mudanças na pontuação. Uma só afeta o jogo solo (que não discutiremos aqui) e outra que eliminava a possibilidade dos jogadores terminarem o jogo com pontuação negativa.
Não é incomum que designers mexam em jogos já lançados. O Jamey Stagmeier por exemplo mexeu agressivamente na pontuação do Tapestry, ao perceber que as pessoas reclamavam do balanceamento das facções.
No caso do Ark Nova, pelo menos ao que me consta, não houve discussões anteriores na comunidade reclamando das pontuações negativas. Porém, assim que houve essa decisão, começou-se uma enorme polêmica sobre o assunto.
Nesse artigo vamos investigar um pouco mais o caso, explicar porque as pessoas têm tanta dificuldade em lidar com perdas e mostrar como os designers (e políticos) usam os nossos vieses para direcionar o nosso comportamento.
Monte seu Zoológico, mas com responsabilidade social!
Ark Nova não é um jogo que apresenta grande novidade em termos de tema. A ideia de administrar um zoológico já foi extensamente explorada pelos designers. Temos jogos de zoológico de todos os tipos, de Zooloretto a Dungeon Petz, passando por Dinosaur Island.
O grande diferencial de Ark Nova é a forma atual de tratar o tema. Em pleno 2023, não cabe você simplesmente fazer um safári, caçar os bichos para enfiá-los em jaulas e apresentá-los ao respeitável público. Você precisa contrabalançar o aspecto puramente econômico do parque que está montando com um parque sustentável, montar ambientes que reflitam os ambientes originais, tratar os animais com dignidade e, claro, fazer propaganda de sua consciência social.
A maneira como o jogo representa isso é simplesmente sensacional. A pontuação é determinada por duas trilhas, a trilha do apelo, isto é, o valor que você consegue obter pelas atrações que você tem no parque e a trilha da conservação, que representa toda infraestrutura de sustentabilidade que você montou para manter o seu empreendimento. O gatilho de fim de jogo é justamente causado quando um dos jogadores possui um parque que consegue encontrar o equilíbrio sustentável, representado pelo encontro dos marcadores das duas trilhas. Ao fim da rodada onde isso acontece, a pontuação é apurada.
Um outro ponto positivo do jogo em termos de mecânica é o ótimo esquema de seleção de ações. São cinco ações possíveis no jogo, representadas por 5 cartas. No seu turno, você pode executar qualquer uma delas, mas as forças variam de 1 a 5, de acordo com a ordem em que elas estão colocadas. A carta relativa a ação realizada vai para posição 1 e todas as demais andam para a direita. Esse esquema permite alguma flexibilidade ao mesmo tempo que recompensa muito a quem consegue planejar bem as próximas jogadas.
Nem tudo são flores. Os benefícios trazidos por cada animal me parecem um tanto quanto aleatórios e as opções para comprar e manter cartas são extremamente limitadas. O jogo montado ocupa um espaço absurdo, mesmo tendo uma mesa grande você terá dificuldades em manter a mesa arrumada e, por fim, a arte é um tanto quanto genérica.
São pequenos detalhes para um jogo que apresenta um desafio bem bacana de planejamento e otimização e que traz uma experiência bastante agradável.
Pelo menos isso é o que eu pensava até saber que os autores e a editora haviam decidido, mudar a pontuação do jogo de modo a melhorar a experiência dos jogadores.
Como eu expliquei, o gatilho de fim de jogo é um dos jogadores fazer as duas trilhas de pontuação se encontrarem. Como a pontuação final era o resultado de uma menos o resultado da outra, o gatilho de fim de jogo acontece justamente quando alguém chegava no 0 e, como consequência óbvia disso, muitos jogadores terminavam o jogo com pontuação negativa e isso gerava muita reclamação para a editora do jogo.
A solução, pelo menos aparentemente, foi meramente cosmética. As trilhas foram recalculadas de modo que o ponto de encontro dos marcadores sempre some 100 e não 0, garantindo assim que todos os jogadores terão uma pontuação positiva. Porem esse mero detalhe na verdade fala muito sobre a forma como entendemos a pontuação dos jogos e o nosso próprio desempenho.
O que são pontos de vitória, afinal de contas?
Todos sabemos que “pontos de vitória valem mais do que dinheiro”. Mas o que são os pontos de vitória, afinal de contas? O que essa unidade mede?
A resposta é que isso depende de cada jogo. Os pontos de vitória nada mais são do que uma unidade de medida utilizada pelo designer para avaliar o desempenho dos jogadores. O jogo é criado de forma que as coisas que o designer entende que representam o progresso do jogador geram pontos de vitória.
Mas o ponto de vitória em si não tem valor intrínseco. A pontuação de um jogo em si, sozinha, não diz nada sobre o sucesso do jogador. Isso só pode ser avaliado em termos comparativos, seja em relação aos demais jogadores ou a outras partidas. E mesmo isso deve ser visto com reserva, pois as condições do setup do jogo e o número de jogadores podem fazer com que a pontuação possa variar bastante.
Tentando tornar esse ponto um pouco menos abstrato. Eu te digo que fui assistir uma partida de futebol. Você me pergunta o placar. Eu digo que o jogo foi 3×3. Pelo fato de sermos brasileiros, você vai assumir que estou falando de um jogo de Football Association, soccer e, nesse esporte, 3×3 normalmente representa uma partida vibrante, cheia de alternativas.
Porém, e se eu estiver falando na verdade de um jogo de futebol americano? Esse placar vai lhe dizer a mesma coisa? Claro que não, um jogo de futebol americano que termine 3×3, isso é, com cada time chutando apenas um field goal correto ao final de 3 horas e pouco de jogo significa provavelmente que o jogo foi chatérrimo. A pontuação de um jogo só tem significado dentro daquele contexto específico, que são as regras daquele jogo.
Em Ark Nova, a ideia da pontuação cruzada era demonstrar que o “desenvolvimento sustentável” havia sido alcançado. Passar do zero era uma forma dos designers “premiarem” os jogadores que não venceram, mas que alcançaram o objetivo do jogo.
O que os designers não contavam era que, no mundo atual, mais importante do que premiar alguém que não venceu, mas que fez uma boa partida, é importante não deixar que alguém que não tenha jogado tão bem se sentir mal. Os placares negativos aparentemente geraram alguma rejeição ao jogo e isso precipitou a mudança.
O Medo de Perder tira a vontade de ganhar
Fazer pontos negativos é algo comum em jogos de tabuleiro. Existem vários jogos, como o Lhama, onde tudo o que você faz é evitar ganhar pontos.
Porém, na maioria das vezes, isso ocorre em jogos mais curtos. Embora os pontos não signifiquem nada em si e a interpretação do seu valor dependa da circunstância da partida, uma pontuação negativa normalmente significa uma partida ruim.
Isso não era o caso de Ark Nova. Uma partida negativa significa apenas que você não conseguiu chegar junto com os adversários que determinaram o fim do jogo. Você não parte de zero e ficou negativo fazendo um monte de besteira, você partiu de -115. Se terminou com -10, você fez na verdade 105 pontos, o que não é nada mal dentro do panorama do jogo.
Esse é um argumento plenamente racional que funciona muito bem se você pensar racionalmente… o que, se você é uma pessoa normal, não é bem o que você faz (ou talvez até seja o que você faça, se você se esforçar para isso, mas não é bem como seus instintos trabalham).
Economia Comportamental é um ramo da ciência que estuda como as pessoas tomam decisões nas mais diversas situações. É um ramo de estudo muito interessante e que mostra como, as emoções nos fazem agir de forma totalmente diferente do que dita a racionalidade.
Um dos vieses mais claros que já foram comprovados no processo de decisão dos seres humanos é a “aversão a perda”.
Aversão a perda não quer dizer que nós não gostemos de perder. Isso é óbvio. O comportamento de aversão a perda na verdade significa que nós damos mais peso ao risco de perder algo do que ao risco de ganhar. E que isso faz com que ajamos de forma bastante irracional quando nos defrontamos com a perspectiva de perder alguma coisa.
Imagine que você encontra uma nota de 100 na rua. É legal, você fica feliz, mas aquilo não muda a sua vida. Provavelmente não vai dar nem para comprar um board game. Mas imagine que você perdeu uma nota de 100. Se você é uma pessoa normal, a sua angústia por perder 100 reais é bem maior do que a sua alegria na situação inversa.
É daí que o “Pofexô” Luxemburgo tirou sua famosa máxima, que abre essa parte do texto. Quando um time se preocupa demais em não perder um jogo, ele perde a ousadia para tentar a vitória. É preciso um esforço racional para domar seus nervos e se manter neutro em relação aos riscos, sob pena de perder boas oportunidades.
Uma poderosa ferramenta de controle social
Pense bem, quantas vezes você evitou uma determinada jogada no Agrícola porque não quis arriscar levar aquele token da mendicância para casa? Muita gente deixa de ganhar 5 pontos para não perder 3. Colocar um menos na frente de uma pontuação é uma poderosa ferramenta de design. E quem dera que isso acontecesse apenas nos jogos.
O melhor trabalho que eu conheço sobre o assunto é o dos pesquisadores israelense Amos Tversky e Daniel Kanheman, no que eles chamam de Teoria da Perspectiva. No livro “Thinking Fast and Slow”, escrito por um dos autores, suas teorias são apresentadas em texto simples.
O principal conceito do livro é que temos 2 modos de pensar: um rápido, baseado no instinto e outro lento baseado na racionalidade. Muitas vezes o que fazemos é decidir com o sistema rápido e usar o sistema lento para justificar a decisão racional. Isso nos deixa muito vulneráveis aos vieses da nossa mente e a aversão ao risco é apenas um desses vieses. Evitar os vieses requer um grande esforço racional e treinamento, coisa que a maioria de nós não faz.
Um outro livro que toca nesses assuntos é o “Desafio aos Deuses – A fascinante história do risco”, de Peter L. Bernstein (que foi o que utilizei para contar o exemplo que cito abaixo).
Sobre a aversão à perda especificamente, existe um experimento que consiste em apresentar a dois grupos diferentes a mesma situação: uma cidade sofrendo uma epidemia onde dois tratamentos eram possíveis, um tratamento mais novo, para o qual não se conhecia a sua real efetividade, onde existia a chance de salvar todo mundo, mas também uma chance de morrer metade das pessoas; e um outro tratamento já conhecido, que garantia a vida de 70% das pessoas, mas onde 30% delas provavelmente morreria (os números podem não ser exatamente esses, mas vocês entenderam a ideia).
A única diferença entre os dois grupos era que, no primeiro grupo, as possibilidades eram quantificadas em termos das possíveis perdas e no outro grupo as possibilidades eram quantificadas em termos da quantidade pessoas salvas.
Pois bem, no primeiro grupo, confrontada com a possibilidade de perder todo mundo, a maioria das pessoas acaba preferindo o tratamento arriscado, na tentativa de evitar uma perda garantida de 30% da população. Já no outro grupo, onde a população total é enfatizada, a maioria das pessoas acaba decidindo pelo tratamento mais conservador.
Não é à toa que os políticos lutam tanto por controlar as narrativas. Ao colocar os fatos de uma determinada forma, eles mexem com as emoções das pessoas buscando obter a reação que lhes interessa, pois eles sabem que mesmo que as pessoas saibam fazer as contas, o instinto é uma força poderosa.
É uma mera questão de escala
Para ser sincero, eu nunca tinha visto ninguém reclamar da pontuação do Ark Nova até o dia em que publicaram a sua mudança. Aí sim apareceram diversas pessoas dizendo que realmente fazer pontuação negativa depois de 3 horas de jogo era muito ruim e etc e tal.
O que eu acho engraçado nisso tudo é que jogar um jogo como Ark Nova é uma atividade na sua maior parte do tempo racional. Segundo o conceito do Daniel Kahneman, jogar um euro pesado é uma atividade do tipo que claramente é para ser trabalhada com o “sistema lento”. Você está o tempo todo fazendo contas, planejando e avaliando os resultados. Repare como os designers quase sempre vão te fazer escolher entre uma vantagem imediata ou buscar uma vantagem de longo prazo. Jogar board game é uma forma de treinar o cérebro a não cair nos vieses humanos.
Ainda assim, ao verificar a pontuação, aparentemente a maior parte das pessoas reage emocionalmente, usando o sistema rápido. Pontos negativos é ruim, eu não gosto, não importa que eles não queiram dizer que tenhamos jogado mal!
Na boa, se mudar a escala de pontuação vai ajudar os autores a vender mais exemplares, eu acho que eles estão mais que certos em fazer isso. O desenvolvimento de board games é uma indústria, o objetivo deles é ganhar dinheiro, não é defender um ponto de vista. Se a maioria das pessoas se sentem melhor vendo uma pontuação positiva e não o que elas de fato fizeram no jogo, qual a colocação em que ficaram, paciência. O mundo não vai acabar porque os designers abriram mão do seu belo conceito original.
Board Games são brinquedos, não se esqueçam disso. É verdade que muitos deles possuem conteúdo intelectual ou artístico e é ótimo quando se consegue juntar o entretenimento com algo a mais. Porem, lembre-se: a prioridade é a diversão! Para dar aula ou lição de moral, existe a escola e os pais.
Para mim, confesso, não fez muita diferença. Eu não anoto meus placares, e não quantifico minhas partidas. Na minha humilde opinião, eu sei agora que o “par” do Ark Nova é chegar aos 100 pontos então, fazer 80 ou -20 pra mim não vai fazer muita diferença. Eu vou ficar chateado do mesmo jeito, porque tem uma linha de chegada que eu não cruzei.
Eu não sei quanto a vocês mas, para mim, não importa se o termômetro está marcando 273K ou 0 Celsius. O que importa é que está frio!
Mais um excelente texto extrapolando o jogo para o mundo! Assim como você eu só descobri que as pessoas se incomodavam com a pontuação negativa quando anunciaram a mudança e veio a enxurrada de comentários a favor/contra, e eu fiquei sinceramente surpreso com a quantidade de pessoas que se sentem mal ao terminarem no negativo. Você expressou muito meu sentimento quanto aos pontos, é uma comparação. Se eu terminei ark nova com 0 e o primeiro com 50 eu vou me achar muito pior do que se eu terminei com -5 e o primeiro com 10, porque apesar do meu zoológico não ter terminado “balanceado”, com a atratividade (eu gosto mais desse nome…haha) e a conservação altas, eu pelo menos sei que estava a, talvez, algumas rodadas de vencer. Não é o negativo que me abala, mas a distância para meus oponentes, ou em relação a outras partidas minhas. Mas por fim fiquei um pouco chateado com a mudança, para ser sincero, com essa necessidade de “amaciar” o jogo.
Além disso, gostei da exemplificação da aversão a perda, me senti representado ao lembrar das vezes que deixei de dar um block no coleguinha pq eu ia acabar perdendo um pouco também, apesar de ser melhor pra mesa…hahahaha
Interessante a reflexão que essa mudança traz, me faz lembrar a diferença de percepção que temos ao ver um produto por R$14,99 ou por R$15,00, em que o preço quebrado nos dá a impressão de ser muito mais barato, ou “pagável”…nosso cérebro é uma doidera mesmo…haha
Tiago,
Obrigado pelos comentários!
O engraçado é que o jogo não foi nem amaciado. Apenas mudou-se a escala da pontuação. O impressionante é como isso é importante para as pessoas, como mesmo elas sabendo que é só uma escala, isso faz diferença real.
Sds,
Eduardo