Em 1993, Jakob Nielsen publicou uma das maiores referências de usabilidade em sistemas até hoje, o livro “Usability Engineering” (Engenharia de Usabilidade). Para Nielsen (por muitos considerado o pai da usabilidade), usabilidade pode ser definida como um dos atributos de qualidade do produto que pode ser avaliado em cinco categorias: Learnability (facilidade de aprendizagem), Efficiency (Eficiência: velocidade e agilidade), Memorability (facilidade para memorizar), Errors (a medida de quantos erros o usuário comete e a facilidade com que ele consegue controlá-los) e Satisfaction (Satisfação). Outro ponto abordado pelo livro é sobre o ideal de engenharia de resolução de problemas de uma aplicação digital versus o ideal artístico. Hoje o estudo e melhorias desses princípios em projetos de digitais é realizado por profissionais de UX (experiência de usuário) nos mais diversos tipos de produtos digitais.
Jogos de tabuleiros não estão distantes dos princípios de usabilidade que aplicamos em uma aplicação digital e portanto, podem ser testados contra os cinco parâmetros de usabilidade de Nielsen, adaptados para o contexto dos jogos. Além disso, os jogos também apresentam o desafio de equilibrar o ideal artístico com o ideal de engenharia que resolve um problema.
A enorme vantagem do jogo de tabuleiro em relação a aplicações digitais é que o jogador está comprometido com a curva de aprendizado necessária para jogar o jogo, e o mesmo não pode ser esperado de um usuário de um website. Mas isso não significa que uma boa usabilidade não seja importante, muito pelo contrário.
Nesse artigo, escrito por um mero curioso em ambos assuntos, eu exploro um pouco da usabilidade aplicada em jogos de tabuleiro adaptando cada um dos 5 princípios para a realidade dos jogos, com o jogador como o meu usuário.
Os 5 princípios de usabilidade aplicados em jogos de tabuleiro:
1) Learnability (facilidade de aprendizagem):
Quantas vezes você ficou frustrado, ou mesmo desistiu de aprender um novo jogo, por causa de um manual mal estruturado?
As regras são a primeira barreira que o jogador enfrenta quando decide aprender um novo jogo. Enquanto as regras de jogos mais complexos e muito temáticos podem nem sempre ser simples, é necessário prover ao jogador o máximo de ferramentas para que ele aprenda o jogo, às vezes até rompendo a barreira do manual e criando conteúdo em vídeo. Exemplos, imagens, e principalmente testes sobre como diferentes pessoas interpretam as regras são importantes para melhorar a eficiência do processo de aprendizado.
É muito comum ao visitar fóruns de regras no BGG, encontrar muitas pessoas com as mesmas dúvidas ou ver diferentes pessoas jogando e errando as mesmas regras. Se você quiser exemplos disso, acesse a página de regras do jogo Heaven & Ale (eggertspiele) e veja quantas vezes as pessoas precisam de ajuda para entender o funcionamento dos monges, ou em nível ainda maior, a página do jogo Carnival Zombie 2Ed, cujo a comunidade criou um FAQ para cobrir todas ambiguidades do manual. Um manual mal estruturado e ambíguo é muito pior que um manual que peca pelo excesso de clareza e redundância. Veja, por exemplo, o manual do jogo Rallyman Dirt, que aplica sem economia o uso de exemplos visuais, mesmo quando só a cor do dado no exemplo é diferente.
Já no manual do famoso Food Chain Magnate (splotter spellen), as principais ações do jogo não são ensinadas com recursos visuais, o jogador que está ainda aprendendo não tem a referência visual do que acontece no exemplo e pode confundir os componentes do jogo que são citados.
Ainda que a maioria das pessoas seja capaz de ter a interpretação correta da regra, a pesquisa de usabilidade é sobre olhar para onde existe dificuldade e aplicar melhorias.
2) Efficiency (Eficiência, velocidade e facilidade)
O parâmetro de eficiência mensura a facilidade e velocidade com que o usuário consegue realizar alguma tarefa.
Jogos de tabuleiro são manuais por natureza, não raro eles requerem etapas de manutenção com que o jogador precisa se acostumar. Devido a isso, medir a velocidade das coisas em jogos de tabuleiro é um pouco diferente, mas ainda aplicável. Podemos elencar pontos importantes que ajudam o jogador a manutenir um jogo com eficiência. Por exemplo, a facilidade de atualizar um contador de vida ou similares de um personagem. Recentemente jogando o jogo Disney Sorcerer’s Arena: Epic Alliances (The Op), percebi que era tão difícil atualizar a vida dos personagens que cada dano causado levava a uma pequena pausa na experiência para brigar com as bases de plástico que não rotacionam como o esperado. Um outro exemplo são os contadores de experiência do Zombicide (CMON), que pra mim são duros além da conta na hora de atualizar, e do lado oposto os contadores de atributos do jogo Betrayal at the House on The Hill (Avalon Hill), que ficam saindo do lugar. Quando o jogo adota um componente diferente dos convencionais, é importante medir a facilidade com que o jogador interage com esse componente e a eficiência dele em cumprir seu papel. Em alguns pontos, a eficiência pode ser alcançada ao realizar bem os outros quatro fatores debatidos neste artigo.
Recentemente li um review do jogo Free Ride (2F-Spiele), onde 100% da frustração do revisor com o jogo é um problema de usabilidade (https://ludopedia.com.br/topico/66250/free-ride-nem-de-graca-eu-entro-nesse-trem, por Israel Ben). O texto é recheado de detalhes de como a falta de eficiência na manutenção do jogo tirou todo prazer da experiência, ofuscando até as qualidades que o jogo pode ter, mas talvez a principal dificuldade seja encontrar as cidades no tabuleiro, porque não existe referência nas cartas como é o caso de outro jogo de trem
famoso (esse mesmo!). O jogo Free Ride também é um exemplo onde o apego excessivo ao ideal artístico cria um problema na usabilidade.
Do lado bom, a preocupação com a eficiência da experiência de usuário pode ser vista aos montes nos jogos de tabuleiro. Eu sempre me preocupo em posicionar o tabuleiro principal de modo a facilitar a leitura de todos, essa preocupação não foi ignorada pela equipe da produção do Ark Nova (Feuerland Spiele), que fizeram dois formatos de tabuleiro que muda a orientação das cartas para facilitar a leitura.
Outro detalhe positivo muito legal é a preocupação que tiveram na produção do jogo Corrosion (Galápagos Jogos), fazendo um corte nas folhas destacáveis para que o jogador tire elas da caixa de forma mais fácil ao abrir o jogo pela primeira vez! Esse é um ótimo exemplo de como a boa usabilidade está em pequenos detalhes que muitas vezes não serão percebidos.
3) Memorability (facilidade para memorizar)
Esse é talvez o princípio de usabilidade mais explorado nos jogos de tabuleiro, já que aqui várias ferramentas de memorização são adotadas de acordo com a complexidade do jogo.
A iconografia ajuda o jogador a memorizar o resultado de ações sem a necessidade de texto e, “auxílios de jogador” trazem resumos sobre regras chave do turno de jogo, etapas de manutenção e pontuação final, entre outros. Considero esse o ponto em que os jogos mais acertam, já que a maioria dos jogos que joguei faz um bom uso dessas ferramentas de memorização. No entanto, ainda vejo com bastante frequência jogos modernos falhando nesse princípio, prejudicando o fluxo da partida.
Um exemplo recente é o jogo Cangaço, que simplesmente não inclui nenhuma iconografia nas cartas em prol da arte, e até mesmo dispensa o uso de “player-aids/auxílios de jogador”, e com isso os jogadores precisam ficar compartilhando o manual na mesa para lembrar o que as cartas fazem. Pequenos detalhes de concepção gráfica do jogo, quando está consciente de como o jogo funciona, ajudam no processo de memorização que pode facilitar até a preparação do jogo, como um jogo de construção de baralho que destaca quais cartas compõem o baralho inicial, facilitando a separação das mesmas durante a preparação ou uma alteração de cor que destaque que ao chegar naquele espaço de trilha algo deve acontecer, ou que aquele espaço é o início.
Assim como acontece com o manual, é melhor pecar pela redundância do que pela vontade de manter a arte do jogo limpa. Um exemplo interessante, mas que considero positivo, é o player-aid gigante do jogo Tawantinsuyu (Galápagos Jogos). O player-aid acaba sendo até mesmo um guia, que ajuda também no processo de memorizar quais os pontos do jogo você precisa ensinar e até mesmo a melhor ordem para apresentar as regras a novos jogadores. Idealmente, o jogo tem regras claras e de fácil memorização, mas sabemos que vários jogos mais complexos tem detalhes em demasia, que muitas vezes representam a própria experiência proposta e nesses casos mais do que nunca, é preciso ajudar o jogador a lembrar.
4) Satisfaction (Satisfação, prazer de jogar)
A satisfação, mensura basicamente o quão prazeroso é usar um sistema.
Para jogos de tabuleiro modernos, a satisfação pode estar ligada a detalhes da produção que tornam o jogo “gostoso” de manusear. Existem vários exemplos positivos nos jogos de tabuleiro onde as escolhas da produção melhoram a satisfação ao jogar um jogo. O famoso jogo Azul, por exemplo, pode atribuir boa parte do seu sucesso ao material das peças escolhidas para os azulejos. Você consegue imaginar Azul com peças de papel? Consegue imaginar Zombicide se tornando um sucesso sem as miniaturas? Fatores como esses, e até mesmo uma boa arte, ajudam a produzir prazer ao jogar um jogo e a vontade de jogá-lo de novo. A falta de prazer ao jogar um jogo também pode estar ligado ao processo de montá-lo e guardá-lo antes e depois da jogatina e esse é um ponto bastante negligenciado, que acabou por gerar um mercado próprio focado em soluções de armazenamento, os famosos inserts.
Se você passa muito tempo guardando seu Caverna após jogá-lo, isso pode diminuir sua motivação para jogá-lo novamente. É por isso que muitas pessoas acabam pagando caro por soluções de armazenamento e hoje isso é explorado pelo mercado com edições de colecionador e em financiamentos coletivos. Às vezes, tentativas de deixar o jogo mais satisfatório levam a problemas na eficiência, aqui podemos citar a famosa árvore do Everdell (Galápagos), que não cabe na caixa montada e dificulta totalmente a leitura das cartas de evento. Na mesma categoria, no jogo Wingspan o comedor é uma torre de dados onde os dados são jogados por trás da torre e não por cima como é mais comum, fica bastante incômodo lançar os dados dependendo de onde você está sentado na mesa. Satisfação é talvez o parâmetro mais subjetivo entre os 5.
5) Errors (Erros, a medida de quantos erros o usuário comete e como consegue controlá-los)
Pessoas erram, a produção do jogo deve proporcionar formas de minimizar esses erros, o quinto e último princípio estuda isso.
Em Papa Paolo (Quined) as moedas de 1,2 e 3 tem exatamente o mesmo tamanho e arte, com um verso igual. Isso é um exemplo de detalhe aparentemente pequeno que pode levar o jogador a errar, pegando uma moeda de 3 no lugar de uma de 1 (sem necessariamente ser o Pikachu da mesa).
Semelhantes aos tokens de recursos muito parecidos, outro exemplo de algo que considero uma má escolha são os recursos de diferentes tamanhos usados para representar uma quantidade maior daquele recurso. Você pode ver a aplicação disso em “As Viagens de Marco Polo” e “Duna: Imperium”. Essa abordagem tem dois problemas de usabilidade, o primeiro é que o jogador pode não se lembrar quantos tokens menores o token maior representa (jogos tendem a variar entre 3 ou 5) e o segundo problema é semelhante as moedas iguais que facilita o erro, fazendo o jogador pegar 3 no lugar de 1.
No BGG o usuário Bjørnar Løseth personalizou os componentes para lembrar o valor deles, agora note como ficou bem melhor na imagem abaixo, ao aplicar uma simples melhoria.
Mas não para por aí! No excelente Cryptid (Grok), temos um exemplo de algo que gera um distúrbio na Força e é o terror dos daltônicos: uma má escolha de cores. Em Cryptid existem dois jogadores com cores muito parecidas, aumentando a propensão ao erro. Uma boa escolha de cores ajuda não só os daltônicos (acessibilidade) como também facilita a leitura do jogo em situações onde a cor importa. Na imagem abaixo um usuário da ludopedia resolveu o problema pintando os componentes.
Detalhes importam!
A usabilidade está presente em muitos lugares, de utensílios de cozinha a garrafas de água. Espero ter conseguido passar para você leitor o quão presente é a usabilidade em jogos de tabuleiro. Novamente, sou um mero curioso em ambos assuntos, mas acredito que o leitor já tenha se frustrado por pelo menos um dos problemas de usabilidade citados aqui e agora possa observar esses detalhes.
Você consegue lembrar de detalhes que prejudicaram sua partida? Ou de detalhes da produção que te ajudaram a ter uma experiência melhor com o jogo?
Um forte abraço e até a próxima!
Júlio Novais, no hobby desde de 2016, mas ainda gosta de praticamente tudo que joga e toparia fácil uma partida de Banco Imobiliário. Adora jogar modos solo e dessa forma explorar um pouco mais cada jogo. Tem um fraco por rolls&write's e jogos com tema de terror e arqueologia.
Sonha em pilotar uma X-Wing, mas é analista de sistemas. Filho do Nelson e da Irismar, já começou a vida rolando 20 e é muito grato por essa sorte.
Gostei muito do texto. Ao começar a ler eu achei que o enfoque seria no game design, mas foi na produção do jogo, o que me surpreendeu positivamente. Mas creio que um artigo com a aplicação desses princípios no game design também seja interessante.
Opa Rafael, bem observado!