Já estava com um outro texto quase pronto para estrear a nova fase da coluna, quando chegou aqui em casa o Lacrimosa, jogo de Gerard Ascenci e Ferran Renalias, que nos coloca no tempo da morte de Mozart, na qualidade de um de seus mecenas, a fim de ajudar a sua viúva a completar a Missa de Réquiem e de ajudá-la a escrever as memórias de seu marido. O jogo, lançado pela Devir, fez sucesso em Essen desse último ano e chegou rapidamente aqui no Brasil. Parabéns a Devir pelo segundo ano consecutivo de sucesso no lançamento de jogos euros de médio para pesado na Spiel.
O jogo em si é legal, mas não foram as suas mecânicas que me motivaram a escrever sobre ele e sim o seu tema, que é a vida de Mozart e sua importância para a Música Clássica.
Amadeus é um dos meus filmes favoritos, não só pela sua trama e excelentes atuações, mas pelo fato de ter me aberto os olhos para a Ópera e também por ter marcado minha vida como o primeiro filme que vi como “adulto” (tinha só 12 anos, mas fui numa seção a noite, com meus pais, pela primeira vez, e fui ao barzinho com eles depois da seção).
Nesse texto eu analiso o contexto que o jogo tenta ilustrar e o que sabemos de verdade sobre a composição do Réquiem. Além disso, eu vou explicar o que é um Réquiem e porque alguém pode se interessar em ouvir uma missa musicada como forma de entretenimento. Por fim, é lógico que vamos falar das mecânicas do jogo e o que eu achei dele. Adianto que são meras impressões iniciais, eu só joguei o solo, mas acredito que foi o suficiente para formar uma boa ideia do jogo.
Gostei muito de escrever esse texto e se 1% das pessoas que o lerem se interessar, um pouquinho que seja, por música clássica, terei alcançado meu objetivo com ele.
Espero que Gostem!
O Dilema da Viúva
Imagine-se no lugar de Constanze, a viúva de Mozart.
Seu marido era extremamente talentoso, e muito trabalhador. Porém, era relativamente irresponsável, gastava tudo o que ganhava. Tinha poucos alunos (que era a principal forma de ganhar dinheiro na época) preferindo compor por encomenda. E, tendo ficado doente e morrido muito jovem, deixou muito pouco para sua esposa e filhos (ele teve seis, mas só dois sobreviveram à infância, o que era comum na época).
Durante as suas últimas semanas de vida, mesmo doente, ele trabalhava sobre um Réquiem, uma missa para os mortos, obra que lhe foi encomendada (sabemos hoje), por um nobre, o Conde Walsegg, que a encomendou pretensamente para homenagear sua esposa recentemente morta, por ocasião do aniversário de um ano de sua morte, em fevereiro de 1792.
Mozart não sobreviveu ao seu Réquiem. No dia 5 de Dezembro de 1791 ele morre e deixa boa parte feita, mas algumas delas, como Sanctus e o Agnus Dei, sem praticamente nada escrito. Além disso,deixa inúmeras dívidas para sua esposa.
Constanze precisava do dinheiro da encomenda, mas queria também manter os direitos futuros pela obra, para poder receber por eventuais apresentações. Então ela pede primeiro a Eybler, um ex-aluno de Mozart, para completar a obra. Ele chega a escrever alguma coisa, mas não consegue completá-la. Então ela pede a Sussmayr, outro aluno de Mozart, para que termine o trabalho. Ele faz, sendo que ainda em 1792 a obra é entregue ao Conde.
Ghost-Writer?
O Conde Walsegg era tido como uma pessoa excêntrica. Ele teria encomendado a obra a Mozart através de intermediários.
Sendo um músico amador e desejando notoriedade, ele várias vezes encomendava obras musicais e as apresentava como sendo suas. Aparentemente esse era o seu objetivo com o Réquiem, apresentá-lo como se fosse obra da inspiração pela tristeza com a morte de sua esposa.
Mozart só tinha recebido metade do pagamento pela obra, então havia um bom dinheiro a receber e é por isso que Constanze se esforçou tanto em conseguir alguém para completar a missa.
Uma vez entregue, porém, sabendo que poderia ganhar um dinheiro extra com apresentações da missa, ela correu para fazer a apresentação da missa como uma obra de Mozart, antes que o Conde pudesse se apresentar como seu compositor.
A moça era danadinha, como podemos ver em Amadeus (se você não viu esse filme, o que está esperando)?
O que é um Réquiem?
A origem da música ocidental é religiosa. Por séculos, tudo o que tivemos foi o canto gregoriano. Claro que havia a música popular também, mas dessa temos pouquíssimos registros.
A função da música sacra era acompanhar os serviços religiosos e o principal deles a missa.
Sim, uma missa, daquelas que tem todo dia na igreja perto da sua casa. Só que em latim (apenas em 1964 o Concílio Vaticano II permitiu que as missas fossem realizadas na língua local). Quando um compositor compõe uma missa, o que ele está fazendo é musicar o texto em latim da missa, total ou parcialmente, para o uso em uma ocasião especial.
Existem missas “normais” que foram musicadas (inclusive por Mozart), mas o Réquiem, dada a dor da perda de um ente querido e a preocupação em lhe garantir uma melhor passagem, se tornou um ganha pão recorrente para os compositores.
Toda missa tem duas partes: o Ordinarium (formado pelas partes que se repetem em todas as missas) e a Sequentia, que é específica em função do serviço que está sendo realizado. No caso do Réquiem, as partes costumam ser organizadas da seguinte forma:
1 – Introit: Requiem, Kyrie
2 – Sequentia: Dies Irae, Tuba Mirum, Rex Tremendae, Recordare, Confutatis, Lacrimosa
3 – Ofertório
4 – Sanctus
5 – Agnus Dei
Independente da sua religião, uma missa pode ser apreciada como uma obra artística. Os compositores aproveitam o tema fúnebre para colocar bastante pathos (isto é, paixão, dor, conflito) na música, alternando trechos tumultuosos com outros muito serenos, permitindo que aquele que ouve encontre consolo para a dor que sente ou que possa imaginar o sofrimento humano perante o destino que inexoravelmente chegará para nós todos.
Para quem se interessar em ouvir, vou deixar aqui uma referência a dois Requiems, o do Mozart e do Verdi. Essas duas peças possuem o mesmo texto, mas foram produzidas com 100 anos de diferença entre elas e com estilos bem diferentes. Mozart era profundamente católico e Verdi era totalmente anticlerical. Ouvi-las são experiências bem impactantes.
O Jogo
No jogo, porém, a situação é contada de um modo diferente: Constanze escreve para alguns nobres que compravam composições de Mozart e que patrocinavam suas apresentações pedindo ajuda para financiar o término da composição. Além disso, tomada por uma visão de futuro impensável para a sua época, onde artistas eram pouco mais que artesãos, ela pensa em reunir histórias do marido contadas pelos nobres que acompanharam sua carreira visando guardá-las para a posteridade em um livro.
Nós, jogadores, estamos no papel desses nobres, que aceitamos placidamente em plena Viena Imperial trabalhar para em prol de uma viúva de um músico relativamente famoso, que está falida e é oriunda da baixa burguesia.
Em que pese eu ter muitas dúvidas quanto a viabilidade dessa narrativa, ela serve bem ao jogo, permitindo que possamos seguir a carreira de Mozart (como se fossem os flashbacks das memória recontadas ou da composições adquiridas ao longo do tempo) ao mesmo tempo em que estamos ajudando a viúva a completar a composição derradeira.
O jogo se passa em cinco fases, cada uma delas representando uma fase da vida do compositor.
Cada fase possui 4 rodadas. Os jogadores começam com um baralho de 9 cartas que apresentam uma ação e um benefício. A cada rodada, usam-se duas cartas: uma para designar a ação a ser realizada e outra para determinar uma renda ao fim da fase.
Os recursos do jogo, além do dinheiro, são coisas difíceis de explicar: pontos de viagem, de talento e de composição. Uma parte desses recursos é volátil, sendo perdida se não utilizada e outra é permanente (na forma de fichas ganhas durante o jogo).
As ações são: contribuir para o Réquiem, Adquirir uma composição, Viajar, Resgatar uma memória (isso é, trocar uma carta de ação por uma nova), e apresentar ou vender uma composição.
As cartas de composição e de memória ocupam o mesmo mercado, com custos diferentes, dependendo do seu tipo. Ao serem compradas, as cartas se deslocam para direita e entram novas cartas. No fim da fase, ficam apenas 3 cartas da fase que se encerrou e entram novas cartas.
As cartas de composição dão pontos ao serem compradas e podem render dinheiro ao serem apresentadas ou riquezas maiores se forem vendidas (mas aí são descartadas, não valendo para os eventuais objetivos de fim de jogo).
As cartas de memória entram no lugar da carta utilizada para renda naquele turno. A cada fase, as cartas se apresentam mais poderosas, com bônus e ações múltiplas, além de melhores benefícios de renda.
O Réquiem é uma espécie de controle de área, onde as cinco partes da missa (tal como explicamos) está aberta com uma partitura de cada instrumento. No jogo, sempre estarão disponíveis dois compositores diferentes para ajudar (os dois que citamos, mais dois que aparecem em outras narrativas que não trouxe para esse texto). O controle de área na verdade é entre os compositores (qual ficará para a posteridade) e os jogadores ganham mais pontos se o compositor que apoiaram naquela parte do Réquiem for o principal.
A viagem pode ser feita por dois tipos de lugares: cidades normais, ou cortes. Você pode viajar para onde quiser, contanto que tenha condição de pagar. As cidades dão bônus imediatos e as cortes dão objetivos de fim de jogo.
Após 20 turnos, verificam-se os bônus finais, as sobras de recursos e dinheiro e é isso. Quem tiver mais pontos ganha.
Análise
Lacrimosa é um euro clássico. Fases bem delineadas, seleção de ações com algum mecanismo de limitação, diversas maneiras de gerar pontuação, interação indireta e um tema quase que ilustrativo.
Em termos de estratégia, trocar as cartas é muito importante, tente pegar pelo menos uma por rodada, pois elas trazem muita vantagem ao seu jogo. E também é importante não ignorar a composição do Réquiem, pois ele pode trazer muitos pontos se alguém ficar pontuando sozinho ali. Porém, aparentemente é possível ganhar sem ter o réquiem como principal alvo. As composições dão muitos pontos e andar no mapa ajuda bastante, pois os bônus das cidades são bem legais.
A interação entre os jogadores é indireta, representada principalmente pelos espaços do Réquiem e pela competição pelas melhores cartas ou tiles. Não há disputa pela iniciativa, o tile de primeiro jogador será passado a esquerda ao final de uma fase.
A minha experiência foi exclusivamente com o solo até agora, que é bem implementado, embora o manual seja muito mal escrito. A adaptação para o automa faz com que ele pontue quase tudo imediatamente (menos os tiles de corte, que ele pontua no final do jogo de maneira incondicional) e que não gera nenhuma gestão de recursos, o que é muito bom. Só joguei no fácil e achei realmente fácil ganhar (ganhei de primeira sem me preocupar muito).
Uma coisa legal que fiz foi, a cada fase, escolher uma das composições que estava no mercado e colocar para tocar enquanto jogava. Além de ser uma forma legal de ouvir composições do Mozart que não conhecia, traz um clima que tem tudo a ver com o jogo!
A qualidade dos componentes e dos tabuleiros e peças é bastante boa. Destaque para o tabuleiro individual, que é em duas camadas (com um espaço para colocar as cartas que é justo ao ponto de não se poder colocar sleeve nas mesmas). Um ponto ruim é que não há nada para ajudar a organizar as peças, nem mesmo ziplocks suficientes. E sendo um jogo de setup complicado, isso atrapalha um pouco.
Usando mecanismos já conhecidos de outros jogos (o uso das cartas me lembra bastante o Lewis & Clark, a troca de cartas lembra o Bitoku, a ação de viagem parece muito a do Newton) e elementos típicos da escola italiana, Lacrimosa é um bom jogo. Não é nada que você não tenha visto antes, mas lhe dará uma experiência de jogo bem agradável
Porém, o maior apelo de Lacrimosa está no tema. A vida de Mozart gerou Amadeus, um dos melhores filmes de todos os tempos. Suas óperas principais só encontram rivais nas obras de Verdi e Wagner. E sua música é, como diz o Salieri do filme, como “se estivéssemos ouvindo a voz de Deus”. Me parecem bons motivos para se fazer uma homenagem na forma de um jogo de tabuleiro.
Se não servir para mais nada, use o Lacrimosa como desculpa para ouvir mais Mozart. O jogo você poderá vender depois, mas a música, como diz Andy (o personagem de Tim Robbins) numa cena antológica de “Um sonho de Liberdade”, nunca poderá ser retirada da sua cabeça.
Joguei ontem o jogo multiplayer na Joga Playeasy e achei que o jogo é uma grata surpresa nesse modo. A interação é maior do que eu imaginei jogando o solo, pois todas as ações incorrem em mudar algo no status do tabuleiro (seja pegar uma das cartas, tiles, ou ocupar um espaço do requiem), então você faz contas de prioridade a todo momento, de acordo com o que você acha que terá mais ou menos concorrência a curto prazo.
Mantenho a opinião do artigo, o jogo não traz nada muito novo, mas consegue integrar bem os diversos mecanismos que utiliza.
Sds,
Eduardo
Excelente texto, em especial pelas conexões que você fez entre a música e o nosso dia a dia. Você mostrou que todos já ouvimos Mozart, mesmo sem saber como na cena do filme. O jogo parece ser interessante. Gostei da análise.
Obrigado pelos comentários, Luciana! Vamos marcar de jogar!!
Muito bom! Tenho muita curiosidade nesse jogo justamente pelo tema inusitado, ao meu ver, e pela possibilidade de instigar mais pessoas a buscarem a música clássica. Jogá-lo com as obras ao fundo deve ser uma experiência realmente interessante.
Mais um belo post!
Obrigado, Tiago!