Após mais de 20 anos desde que foi lançado, acho que eu não corro mais risco em falar abertamente sobre o final de “O Sexto Sentido” sem ser acusado de spoilers. Se você for um extraterrestre que se infiltrou na terra recentemente e não sabe do que estou falando, sugiro pular a introdução desse artigo.
Quando o filme foi lançado, houve uma preocupação muito grande em preservar para o público o “plot twist”, o momento em que uma coisa muito simples acontece, mas que muda totalmente a história que você vinha assistindo.
O filme é espetacular e esse momento em que tudo muda é tão icônico que o diretor do filme se viu obrigado a tentar repeti-lo em todos os seus filmes futuros, o que obviamente nunca funcionou bem, pois a suspensão de descrença ficou prejudicada. Qualquer coisa que aconteça nos filmes passou a ser vista com desconfiança, nós ficamos procurando pistas para descobrir a pegadinha do final ao invés de curtir a história. A surpresa tem mais efeito se você não a espera.
Plot Twists não costumam ser muito apreciados nos jogos de tabuleiro. Com exceção de jogos narrativos ou legacy, onde surpresas são esperadas, de maneira geral os jogadores hardcore costumam preferir jogos onde tudo está às claras, de modo que eles possam planejar melhor suas estratégias.
Porém, existe algo parecido que é muito apreciado, que, na falta de um nome melhor, chamarei de “turning point”. O designer traz ao jogador uma decisão crucial, que pode ou não ser tomada em algum momento e que pode mudar radicalmente os rumos da partida.
Um bom exemplo é o Pipeline. Nesse jogo somos donos de empresas de petróleo atuando em um país que está vendendo pedaços da sua estatal. É um jogo econômico bem interativo e muito punitivo (todo mundo termina mais rico do começou, mas alguns ficam MUITO mais ricos que outros). Em Pipeline, a decisão crucial está no momento em que você decide automatizar a sua produção. Se feita no momento certo, o seu jogo engata a quinta marcha e você passa a ganhar muito dinheiro mas, se você tentar fazer isso enquanto não tem condições de pagar os custos associados a mecanização, seu jogo afunda de vez.
Flotilla é um jogo com esse tipo de característica e, na minha opinião, talvez seja o jogo que melhor implementa essa ideia (pelo menos dentre os jogos que conheço).
Lançado em 2019 pela Wizkids, Flotilla é um jogo de Michael Mihealsick e J.B.Howell que mistura conceitos das escolas americanas e europeias e que alia uma temática bem elaborada com uma plêiade de mecânicas interessantes. Está sendo lançado no Brasil pela Galápagos e deve chegar às lojas ainda em Agosto.
Neste artigo vamos discutir brevemente os elementos do jogo, focando principalmente no turning point que jogo propõe e como isso afeta a dinâmica do jogo.
Waterworld, o Boardgame
Flotilla lembra muito o conceito apresentado no filme Waterworld, uma mega produção de 1995 que, literalmente, afundou nas bilheterias.
No filme, o aquecimento global chegou a tal ponto em que as calotas polares derreteram e o mundo ficou praticamente todo submerso, com os sobreviventes tendo que percorrer os mares em busca de meios de subsistência. No meio de constantes guerras entre milícias marítimas, Kevin Costner é um ex-fuzileiro que tenta ajudar uma mulher e uma menina a encontrarem terra firme.
Flotilla parte mais ou menos da mesma ideia, mas as inundações teriam sido causadas pelos testes nucleares feitos pelos Estados Unidos no Atol de Bikini durante a década de 50. Um desses testes teria jogado quantidades gigantescas de radioatividade por toda terra e, como se não fosse o suficiente, teria causado uma reação sísmica cujas consequências (terremotos e tsunamis) teriam deixado toda a terra debaixo d’água. Aos poucos, os sobreviventes se reuniram com as embarcações que sobraram e com tudo que podia flutuar e fundaram a Flotilla, uma cidade flutuante, último bastião de resistência da humanidade.
Os jogadores começam cada um como o líder de uma equipe de exploradores (sink side), que avançam sobre o oceano e buscam nas profundezas (os antigos continentes) os recursos necessários para a sobrevivência. Porém, você não está condenado a viver assim a vida toda: o jogo permite que você se torne um empreendedor (sky side) na superfície de Flotilla, atuando para expandi-la e auferir renda com isso.
Flotilla segue a tendência atual de se criar jogos com temas ricos implementados com mecânicas comuns aos jogos euro. Além de Scythe, que talvez seja o jogo mais famoso desse estilo, podemos citar o recente Anachrony. Flotilla nada deixa a desejar nesse sentido.
Análise do Jogo
A beleza do design está em como essa decisão se torna um fator de equilíbrio no jogo. A questão não é “quando” você vai fazer a escolha de mudar de vida (como é em Pipeline), mas “se” você irá fazê-la ou não. E, pelo menos a princípio, não existe uma resposta certa, pois o jogo permite que se busque a vitória jogando a maior parte do tempo em um dos lados ou até sem nunca trocar de lado. Depende muito do que os adversários fizerem.
Flotilla possui diversas mecânicas entremeadas. Eu não pretendo aqui explicar tudo, apenas dar uma visão geral na seleção de ações, na já citada decisão entre explorar e empreender e por fim, a economia que o jogo implementa através do mercado de recursos.
A sua seleção de ações é definida por um baralho cujas cartas representam a sua tripulação (semelhante ao Concórdia), com ações diferentes para o caso de você estar trabalhando no oceano ou na superfície. Isso vale tanto para as cartas iniciais como para as que ficam à disposição para compra durante o jogo. A compra de cartas, a exploração de recursos, a construção de prédios e a resolução de metas (exclusivas para cada “lado” do jogo) lhe dão um baita desafio de otimização de recursos.
Se o jogo fosse só isso (o que não é pouca coisa), eu estaria falando de um euro normal. O que lhe dá uma faceta diferente é o mercado de recursos. Aliada a dinâmica dos lados de exploração e construção, é isso que torna Flotilla um jogo muito diferenciado, pois a demanda e oferta dos recursos é definida diretamente pelos jogadores (num estilo que lembra o Clãs da Caledônia) trazendo ao jogo uma interatividade que não costuma aparecer muito nos jogos de estilo europeu atuais.
A Economia do Apocalipse
Quando o jogo começa, a tendência é os preços dos recursos baixarem absurdamente, pois todos estão vendendo para o mercado e poucas coisas fazem os preços subirem. Isso torna muito atrativo ir para o outro lado. À medida que alguém faz isso e começa a se aproveitar dos baixos preços, o desequilíbrio se reduz e a exploração fica um pouco mais rentável.
O jogo se preocupa em deixar a decisão de mudar de lado interessante em qualquer momento do jogo. Se você mudar nas fases iniciais, receberá mais dinheiro, mas não poderá construir imediatamente. Se deixar para mudar no final, será o contrário, ganhará menos dinheiro (compensando o fato que você deve ter armazenado muitos recursos), porém com o direito de construir imediatamente.
A estratégia mais direta parece ser começar o jogo explorando alguns tiles de oceano e construindo os barcos para depois mudar de lado. Na minha partida, eu fui o primeiro a mudar de lado. Isso me ajudou bastante, pois eu aproveitei bem a oferta de produtos baratos. Ainda assim, não venci o jogo, fiquei em segundo lugar. O primeiro foi o jogador que só mudou de lado na penúltima rodada.
Acredito que seja importante observar as missões e verificar de que lado estão aquelas que você acredita resolver mais rápido. Eu diria que a sua decisão deve estar ligada a que missões você pretende atender.
O fim de jogo é declarado quando se esgota o estoque de pontos de vitória determinado para o decorrer da partida (ainda haverão os pontos de fim de jogo). Essa quantidade finita de pontos torna o jogo bem suscetível ao rush, portanto, cuidado para não gerar um motor de ciclo muito longo ou verá seu plano a ver navios.
Seria muita pretensão minha sugerir estratégias detalhadas, pois só arranhei o jogo na partida que tive. O jogo é bem complexo e lhe oferecerá muito no que pensar.
Conclusão
Eu não gostei muito do conceito artístico (a cidade parece uma favela – o que acredito ser proposital – ao mesmo tempo que os tripulantes parecem uns descolados saindo de uma rave – não parecem estar tendo muita dificuldade em sobreviver, afinal de contas). Dito isso, o jogo tem uma boa qualidade de componentes, a iconografia é bem feita (embora seja complementada com texto nas cartas) e o manual é bem ilustrado, embora eu tenha achado um pouco difícil entender o jogo apenas com sua leitura.
Na mesa, o jogo é um buraco negro e tomará todo o espaço que você tiver. Isso piora durante a partida à medida que o oceano vai sendo revelado pelos jogadores.
Enfim, Flotilla é um jogo complexo que acredito que irá fazer bastante sucesso nas mesas mais pesadas do país. Suas mecânicas são manjadas, mas a sua originalidade está em como o planejamento de um euro pesado e interação de uma economia de oferta e demanda se equilibram em um jogo que foge das definições comuns. Vamos torcer para que a Galápagos tenha feito um bom trabalho de localização!
A nossa vida é cheia de decisões cruciais. A resposta quase nunca é óbvia: troco ou não de emprego? Será ela a mulher da minha vida? Caso ou compro uma bicicleta?
É bom que os jogos nos tragam dilemas que não tenham uma única resposta. Espero que você consiga exercitar sua reflexão (e aguentar as suas consequências) definindo sua vida em Flotilla!
Nota: 8/10
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!