Era uma noite de terça-feira normal. A Live Nórdica do Covil transcorria sem maiores percalços até que, num “claro” abuso do seu papel de co-host, o Renato Simões faz um “indecoroso” jabá do leilão que postou na Ludopedia, onde ele colocou a venda um jogo de vazas chamado “Trick of the Rails”, atualmente esgotado (o fato de eu cair repetidamente nessa armadilha – comprei dois jogos da última vez – nada tem a ver com isso).
Como é praxe nesses leilões anunciados no Covil, a disputa foi acirrada. Quando eu olhei, ainda durante a live, o lance já estava superior a R$200,00. Ao final, fiquei sabendo que o jogo tinha saído a R$700,00 para a consternação geral do respeitável público.
Choveram posts reclamando do absurdo que seria pagar 700 reais em um jogo que é basicamente um baralho de cartas. Eu me considero bastante liberal em relação ao que cada um faz com o seu próprio dinheiro, mas confesso que dessa vez achei que realmente exageraram.
Só que, adivinhem, eu descobri que foi um amigo meu que comprou o jogo. Ele mesmo me contou e reclamou dos comentários que leu, que ninguém tem nada a ver com o dinheiro dele (o que é verdade) e ele queria o jogo, o dinheiro é dele, qual o problema?
“Nenhum, realmente! E, já que você comprou, vamos jogá-lo?”
Como não se joga um jogo de cartas de 700 reais todo dia, resolvi fazer esse review. Além de explicar o jogo e dar a minha opinião sobre o mesmo, como nenhum tema dá mais pano pra manga do que o preço dos jogos, vou falar sobre o valor subjetivo das coisas!
18XX na forma de vazas?
Trick of the Rails é um jogo de Hisashi Hayachi (o mesmo designer de Yokohama e Railways of Nippon). Foi produzido em 2011, está esgotado, possui rating de 6,5 no BGG e peso de 2,3.
Os japoneses são muito criativos para desenvolver jogos de carteado: American Bookshop (lançado aqui como “Corta!”) e o sensacional Scout são os exemplos mais conhecidos, mas existe uma miríade de jogos de caixinha lançados por eles.
A proposta de Trick of the Rails é um tanto quanto pretensiosa: entregar um jogo 18XX na forma de um jogo de vazas. Não é uma tarefa fácil!
Preciso explicar aqui o que é 18XX. Basicamente, é um categoria de jogos econômicos onde o tema sempre é a expansão das companhias ferroviárias em um determinado cenário e lugar durante o século XIX (por isso o nome sempre incluir uma data 1800 e alguma coisa). Os jogadores normalmente são investidores e as ações do jogo são voltadas tanto à operação da empresa como também aos movimentos no mercado pelo controle acionário das mesmas.
Normalmente são jogos pesados, punitivos e demorados, com muitos mapas e componentes, mas de maneira geral a produção é pobre. As tiragens são pequenas e os preços, altíssimos. Jogá-los é uma experiência que muitas vezes lembra mais o trabalho do que a diversão. Resumindo tudo isso, é um tipo de jogo que se mantém um nicho bem restrito no hobby, ainda que intensamente cultuado pelos seus iniciados. Alguns exemplos conhecidos são 1830: Railways & Robber Barons, 18 Chesapeake, 1846: The Race for the Midwest.
Eu ainda não joguei nenhum jogo 18XX “raiz”, mas já joguei alguns euros e econômicos que se inspiram nesses jogos: City of the Big Shoulders e Age of Steam servem como exemplos. O Brass tem o mesmo tema, porém sem a especulação financeira.
E como o Trick of the Rails emula essa experiência usando apenas um baralho? Bem, ele abstrai bastante coisa, mas mantém o básico que é a competição pelas ações das empresas, a criação de rotas de valor e o peso da infra-estrutura (na forma das locomotivas).
O jogo possui um baralho de cartas divididas em 5 naipes e algumas cartas extras, que servem para ações específicas no jogo (as locomotivas, as cidades e as cartas de reserva). Os naipes representam as 5 empresas que competem no jogo e as cartas “normais” podem servir como ações da empresa ou como trechos da ferrovia.
No setup, distribuem-se as cartas normais na quantidade determinada pelo número de jogadores (15 no caso de 3 pessoas). As cartas remanescentes formam os trechos iniciais das companhias, junto com as suas estações.
Feito isso, monta-a a trilha das vazas, organizando-se as cartas especiais numa trilha que tem o mesmo tamanho do que a quantidade de vazas a serem jogadas.
Essa trilha define duas coisas: o prêmio do vencedor de cada vaza e se as cartas jogadas durante a mesma serão usadas como ações ou trechos de ferrovia.
É importante notar que cada carta tem um valor para a vaza (de 1 a 10) e um valor como trecho. Então você precisa jogar as vazas não só pensando em vencer, mas em usá-las da forma mais eficiente, colocando trechos mais valiosos nas companhias que lhe interessam e ganhando as vazas estratégicas para garantir as ações de que precisa.
A mecânica das vazas é bem tradicional: tem que seguir o naipe e não tem trunfo. O que é diferente é que cada um fica com a carta que jogou ao final, menos o vencedor, que pega a carta prêmio e a guarda (se for ação ou caminho) ou a resolve (se for cidade ou locomotiva).
As empresas pontuam pelo trecho servido pela locomotiva que elas tiverem, menos o custo da mesma. Cada ação que o jogador tiver valerá esse valor ao final do jogo. Quem tiver mais dinheiro vence.
Análise
A questão do jogo é basicamente manipular sua mão e ganhar as vazas pensando não na sua quantidade, mas nas cartas que serão colocadas nas ferrovias ou que se tornarão ações na sua mão e na dos adversários.
As cidades melhoram o valor da ferrovia que passa por elas e as locomotivas determinam o custo e o limite de ganho de cada empresa.
O mais importante é ter as ações das empresas melhor valorizadas e, isso pode ser obtido simplesmente através do descarte de cartas perdedoras. Você precisa seguir o naipe mas se estiver sem cartas do naipe puxado pode descartar o que quiser e a carta descartada vai para o seu jogo.
Nas vazas de trilhos é importante perceber que você terá que balancear o valor da carta para a decisão da vaza com o seu valor para ferrovia, que varia em cada naipe. Seja para ganhar ou perder, jogar uma carta é sempre uma decisão que requer reflexão, pois as cartas mais baixas tendem a dar mais pontos para as ferrovias.
Enfim, eu gostei do jogo, pois cada vaza traz decisões importantes a serem tomadas e a estratégia precisa ser constantemente reavaliada. Seu maior problema me pareceu o fato de que a partida é formada por apenas uma mão do jogo. Jogos de vaza normalmente mitigam a sorte sugerindo que se joguem várias mãos (rodadas).
Ainda que seja possível vencer nesse jogo sem ganhar uma vaza sequer, eu acho que um somatório de 3 rodadas seria mais interessante para premiar quem jogou melhor, minimizando a vantagem do adversário quando jogou sem cartas altas e maximizando seu próprio resultado quando teve chance para isso.
Terminada a explicação, a pergunta que não quer calar: eu pagaria R$700,00 para adquiri-lo?
Quanto vale um jogo?
No filme “Uma Linda Mulher”, logo após terem seu primeiro encontro, a personagem da Julia Roberts brinca com o personagem do Richard Gere que ela teria feito o programa por bem menos se ele tivesse negociado mais, ao que ele responde “e eu teria pago bem mais se você tivesse negociado também”.
Valor é o que você obtém por algo que você adquire. Preço é apenas a quantidade de dinheiro envolvida na operação. Em uma boa negociação, ambos os lados saem com mais valor do que obtinham antes. Isso só é possível porque o valor é algo subjetivo. O dinheiro vale mais do que o bem na opinião do vendedor e o bem mais do que o dinheiro na opinião do comprador.
Voltando ao Trick of the Rails, afinal, ele vale R$700,00? Vou dar duas respostas: uma rápida e uma longa.
A resposta rápida é “NÃO”. E os argumentos são simples: o jogo é legal, mas possui concorrentes a altura no mercado, sendo vários deles em estoque e oferecidos a preços “normais”: se você quiser jogos de vaza, posso sugerir os dois “The Crew” e o recém lançado “Brian Boru”, sendo ambos jogos de vaza que ultrapassam a questão de simplesmente ganhar vazas e fazer pontos. Se sairmos das vazas e pensarmos em jogos de especulação financeira, podemos citar o Wall Street 1920 como alternativa. Então, se o que você busca é apenas um jogo para se divertir, não há motivos para pagar o preço de um jogo com miniaturas em um jogo de cartas.
A resposta longa é “DEPENDE”. Vou explicar:
Depende de como você enxerga o jogo. Como você define o que você está comprando?
- Um baralho de umas 70 cartas de papel plastificado numa caixinha pequena?
- Um objeto que servirá para se divertir, como tantos outros que você tem em casa?
- Um produto específico, que está esgotado, é difícil de achar e que você quer incluir na sua coleção?
A resposta depende de como você enxerga o que está comprando.
A Mona Lisa não é o quadro mais caro do mundo pelo valor de sua tela e suas tintas e sim porque é um objeto histórico que se tornou quase uma relíquia, porque foi pintada por Leonardo da Vinci e esteve na cabeceira do Napoleão Bonaparte. Porque foi roubada e passeou de bonde e trem por toda a Paris sem que ninguém a reconhecesse. Porque ela “esconde” de nossa vista o maior quadro do museu (as Bodas de Canaã, que fica justamente a frente dela) de tão absorvidos que todos ficam ao tentar decifrar o significado daquele tímido sorriso de uma dama florentina.
Todas essas pessoas estão de costas para o maior quadro do Museu.
Guardada as devidas proporções, é o que acontece com este e qualquer jogo que pensemos em comprar. Se o único valor que você enxerga está nos componentes, você pode fazer uma cópia dele numa gráfica. Se você o enxerga apenas como mais um jogo, você irá compará-lo com os outros jogos parecidos. Porém, se você é um colecionador e AQUELE jogo é o que lhe interessa, o limite do preço é o que você pode pagar por ele.
Como o meu amigo argumentou, ele já gastou muito mais em frete e imposto de jogo de financiamento coletivo. Ele é uma pessoa muito bem-sucedida, esse dinheiro não é uma quantidade que atrapalhe seu planejamento financeiro e ele está feliz com o que comprou (não sei se tanto quanto o personagem de Richard Gere no filme, mas isso não vem ao caso).
E isso encerra o caso para mim.
Conclusão
Acho que é válido os hobbistas discutirem e entenderem o que vem levando ao aumento do custo dos jogos, não só no Brasil, mas no mundo todo. Mas os preços de leilões de jogos esgotados não vão nos ajudar nisso. Esses preços sempre vão depender mais da disponibilidade de grana dos interessados (principalmente se houver competição pelo item) do que pelo seu valor intrínseco. Se eles geram algum sinal para a indústria, é que pode haver interesse numa reimpressão ou reedição daquele jogo.
Trick of the Rails é um bom exemplo de como se pode usar a mecânica de vazas para desenvolver jogos tão diferentes. Sendo de 2011, podemos ver que ele trouxe ideias que vêm sendo utilizadas em jogos recentes, como The Crew (a necessidade de ganhar vazas específicas) e Brian Boru (com cartas vencedoras e perdedoras gerando efeitos para o jogador). Não acho que ele consiga ser um “18XX em forma de vazas”, mas é um bom exemplo de jogo de gestão de mão e leitura de intenções dos adversários, além das técnicas habituais envolvidas em jogos desse tipo.
Graças a Deus, não precisei pagar R$700,00 para jogá-lo. Mas você também não precisa, ele está no BGA, é só entrar e jogar.
Vamos aproveitar o que temos em vez de lamentar pelo que não temos!
Nota: 7/10
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!