Se trabalhar no que se gosta é uma benção, podemos dizer que Robert Coelho, é alguém duplamente ungido. Ele não apenas trabalha projetando jogos de tabuleiro como consegue fazer jogos usando suas paixões como tema.
Se no premiado “Comic Hunters”, que ainda não conheço (Robert, se você ler o texto, estou esperando aquele gameplay), ele versou sobre a paixão por ler e colecionar gibis, em “Shakespeare – Sonhos de um Bardo” o ex-diretor de teatro que se tornou game designer nos apresenta os principais personagens do dramaturgo inglês disputando o protagonismo de uma peça louca que se desenrola nos sonhos de seu criador.
O jogo é apresentado como um rápido cardgame em 5 atos (isto é, rodadas) e no final, aquele que tiver o elenco mais rico e variado vence a disputa. Mas cuidado, como toda boa comédia shakespeariana, sua trama é baseada em peripécias, mal-entendidos, disfarces e traições. Ri por último quem ri melhor? Ou será que não?
Nesse artigo vamos falar um pouco sobre Shakespeare e sua obra, explicar a mecânica do jogo e terminar dando nossa opinião
Um Milagre chamado Shakespeare
Ao mesmo tempo que sabemos muito pouco sobre Shakespeare, existem inúmeras hipóteses e teorias sobre quem ele foi de fato. A principal controvérsia é se o ator William Shakespeare, um homem vindo da baixa burguesia, seria de fato o poeta que escreveu peças e sonetos com tamanha profundidade.
Sem entrar em muitos detalhes, invocar a necessidade de nobreza ou necessidade de uma educação de primeira linha para ter a capacidade de sondar a alma humana é uma tremenda besteira. Em primeiro lugar, porque a Inglaterra tinha um excelente sistema educacional (para aquela época) disponível aos filhos da burguesia (como era o caso de Shakespeare, seu pai era um funcionário público respeitado), as grammar schools. Shakespeare frequentou uma dessas escolas antes de se juntar a uma companhia de teatro e partir em turnê pelo reino.
Em segundo lugar, não precisamos ir muito longe para encontrar um outro bardo, de origem bem mais humilde que Shakespeare e que, tendo feito apenas o primário, lançou mais de 500 canções, algumas delas obras-primas de sensibilidade e percepção, como “As rosas não falam” e “O mundo é um moinho”. Estou falando de Angenor de Oliveira, o Cartola, um dos maiores sambistas do Brasil e um dos maiores nomes da Música Popular Brasileira.
Escritores e Compositores de talento buscam sua inspiração observando a vida real com sensibilidade e se aprenderem o mínimo para se comunicar, encontrarão os elementos necessários para traduzirem suas histórias ou poemas para o mundo.
Shakespeare, ou seja lá quem tenha escrito suas peças, é um dos milagres da humanidade. Suas peças, divididas em Tragédias, Peças Históricas e Comédias, são um em seu conjunto um grande estudo sobre o ser humano, sobre do que ele é capaz, em seus melhores e piores momentos. O roteiro de suas peças não são exageradamente sofisticados, são os personagens que fazem a diferença, se tornando humanos reais perante nós ao serem tão bem construídos a partir do que falam e sentem.
Tendo ficado meio obscuro durante a o fim da era moderna, foi redescoberto pelos românticos no século XIX. Verdi, outro milagre da humanidade, baseou-se em seus textos para pelo menos 3 óperas, tidas como obras-primas: Macbeth, Othello e Falstaff (essa baseada na peça “As alegres comadres de Windsor”, as outras em peças de mesmo nome).
Incontáveis filmes e adaptações de suas obras já foram realizadas. Frases de suas peças são usadas no quotidiano e repetidas por muita gente que nunca entrou num teatro:
- Há mais coisas entre o céu e a terra do que admitem suas vãs filosofias!
- Meu Reino por um Cavalo!
- Há algo de Podre no Reino da Dinamarca!
Será que o “Shakespeare – Sonhos de um Bardo” se mostra a altura da obra de seu muso inspirador? É o que veremos…
O Jogo
“Shakespeare – Sonhos de um Bardo” é um jogo de cartas extremamente temático. A ideia é que cada um de nós está agindo como o “id” de Shakespeare durante o seu sono, compondo uma espécie de pastiche de suas peças usando os seus principais personagens, cenários e os principais truques de cena que suas peças apresentavam.
O jogo possui 3 tipos de cartas: cenários, personagens e peripécias.
Os cenários são sorteados um a cada rodada e determinam o tipo de personagem que terá preferência para se tornar o protagonista (isto é, o vencedor) do ato.
Os personagens são divididos em seis tipos, sendo que alguns deles apresentam mais de um tipo: Enamorados, Trágicos, Realeza, Nobreza, Militares, e Fantásticos. Eles possuem um valor relativo, recebem um cachê para entrar em cena e possuem uma ação dramática (que pode ser realizada quando entram em cena, dar um poder passivo ou permitir uma reação a algum acontecimento específico).
Personagens enamorados normalmente possuem uma referência a quem é sua alma gêmea (Romeu forma casal com Julieta, por exemplo). Os casais podem entrar em cena juntos, mas apenas uma ação será executada. Alguns personagens enamorados não possuem par específico e podem formar casal com qualquer outra carta (independente de gênero).
Quando entram em jogo eles podem estar “em cena”, “no elenco”, serem eliminados ou descartados (são dois conceitos diferentes). A principal forma de ganhar pontos é acumular os símbolos dos personagens que integram seu elenco.
As peripécias são cartas de ações que mudam o panorama do jogo. Elas podem ser jogadas em substituição às ações dramáticas ou como ações extras (que precisam ser pagas com as moedas ganhas como cachê dos personagens que entraram em cena).
O jogo tem 5 rodadas, cada uma delas representando o ato de uma peça. Em cada ato, cada jogador colocará em cena pelo menos um personagem e executará pelo menos uma ação dramática. Após isso, caso queira, ele pode gastar dinheiro para executar ações extras, que inclusive podem significar a entrada de novas personagens em cena.
Quando o jogador encerra sua jogada, ele escolhe o próximo a jogar. Quando todos terminam sua jogada, o ato se encerra e verifica-se quem é o protagonista, que será o personagem que seja do tipo sugerido pelo cenário e que tenha o maior valor de personagem ou, caso não tenha nenhum personagem do tipo sugerido em cena, aquele que tiver o maior valor.
O jogador que possuir o protagonista ganha para si a carta de cenário (que lhe dará um símbolo para subir na trilha respectiva) e quatro moedas. Além disso, este será o primeiro jogador do ato seguinte.
Todos os jogadores colocam seus personagens que estavam em cena no elenco (a linha de baixo de sua área de jogo) e acumulam os símbolos adquiridos e uma nova rodada se inicia.
Ao final da quinta rodada, somam-se os pontos das trilhas de símbolos e adiciona-se 10 pontos para cada conjunto de seis símbolos diferentes. Além disso, cada 3 moedas não usadas valem 1 ponto. Vence quem tiver mais pontos.
Comentários
É difícil classificar esse jogo, pois apesar de possuir uma estrutura bem simples, a sua dinâmica o torna razoavelmente complexo, devido basicamente a três motivos:
a) a variedade das ações dramáticas possíveis, dada a variedade das cartas;
b) e a multiplicidade de estados possíveis para as cartas estarem em jogo;
c) o alto nível de interação;
Embora haja um draft das cartas de personagens no início do jogo, o que permite que você tenha uma noção de quem pode entrar em cena, outros personagens serão comprados ao longo da partida. E, à medida que as rodadas passam, com o tamanho dos elencos aumentando, as combinações vão se tornando as mais loucas possíveis, ao ponto de ser muito difícil um jogador controlar totalmente as ações.
Jogos assim encontram certa dificuldade para ver mesa pois não é tão simples explicá-los, o que dificulta sua apresentação a jogadores inexperientes, ao mesmo tempo que jogadores mais experientes, principalmente aqueles mais versados nos euros, tendem a torcer o nariz para um jogo tão caótico.
Outro problema é que, com tanto texto nas cartas e combinações a ponderar, o downtime tende a ser grande, pelo menos enquanto os jogadores não conhecerem bem as cartas.
O ponto forte do jogo é a forma como os personagens ganham vida através de suas ações. Quem é minimamente familiarizado com a obra de Shakespeare ficará bobo como o Robert conseguiu captar a essência da maioria dos personagens nas ações e como os cenários e peripécias se encaixam bem com as situações das peças reais. A forma como os personagens foram desenvolvidos é o grande feito do jogo e o justifica, na minha opinião.
Para citar um exemplo, numa das minhas partidas eu recebi o Júlio César logo no início do jogo. A ação dele é que, caso ele sobreviva ao 5o. ato, ele vira Rei e deixa de ser um personagem trágico. Esperei até o quinto ato para jogá-lo e ele sobreviveu!
Ganhei o jogo? Longe disso! O que é ganhar uma mera partida quando se pode reescrever a história e tornar César o verdadeiro Rei de Roma?
Esse é o tipo de jogo que se joga pela experiência e não pelo resultado. Gostaria muito de ter a chance de jogar com atores que conheçam as falas e trejeitos dos personagens e que façam algum roleplay quando realizam uma ação dramática.
A produção das cartas ficou muito bonita, representando bem a imagem dos personagens ao mesmo tempo que manteve uma coerência estética. A arte nos faz crer que é possível que todos aqueles personagens comunguem de um mesmo universo.
Conclusão
Em 2019 tive a oportunidade, pela primeira vez em minha vida, de ir a Londres. Foi a trabalho, para participar de um congresso de TI.
Quando viajamos a trabalho minha empresa não nos permite esticar a viagem, então o tempo de lazer era muito curto, só tinha o horário da noite livre. Cheguei a deixar de almoçar para visitar a National Gallery e para (em outro dia) tirar a clássica foto atravessando a Abbey Road.
Ainda assim, gastei duas noites para ir ao Globe Theatre. Para a primeira peça, Henrique V, havia comprado ingresso pelo site, ainda aqui do Brasil. Gostei tanto da experiência que voltei na quarta à noite, dessa vez para assistir em pé, o Henrique IV parte 1. E gostei mais ainda!
Se quem me ler for a Londres algum dia, faça um favor a si mesmo: procure a programação do Globe Theatre, compre um ingresso para plateia (são apenas 5 libras) curta a experiência de ver uma peça de Shakespeare em seu habitat natural, em pé, na margem sul do Tâmisa. Tome uma cidra (é boa, não tem nada a ver com aquela porcaria que a Cereser faz por aqui) no intervalo e , ao final, volte andando pela beira do rio até seu hotel.
Terá sido um bom dia, eu garanto a você!
“Shakespeare – Sonhos de um Bardo” não é um jogo perfeito, talvez não seja para qualquer jogador. Eu mesmo não sei bem se vou conseguir jogá-lo muitas vezes, pois minha turma é muito voltada para os euros e sei que ele não fará grande sucesso.
Mesmo assim, ele ficará na minha coleção, pois ele me lembra coisas que gosto muito. Não só esses personagens tão maravilhosamente humanos, que sobrevivem ao tempo porque suas paixões são também as nossas, mas também aquelas noites londrinas na primavera de 2019 que espero repetir um dia, quando o Covid deixar.
Nota: 7
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!