Lhama é um dos jogos que eu mais gosto de jogar. É um jogo rápido, divertido, que te coloca decisões excruciantes em quase toda rodada (apesar de em muitos turnos você se sentir totalmente um “passageiro”, sem conseguir influenciar os acontecimentos), sendo ao mesmo tempo muito recompensador quando você consegue mudar o rumo da partida.
Esse texto conta a história de como eu me meti na arena BGA para jogar Lhama, joguei mais de 500 partidas em um mês, cheguei a ser o líder do ranking mundial na arena por duas semanas, além de ter conquistado o 5o lugar em ELO em um determinado momento (bem breve, por sinal).
Eu já escrevi sobre a busca do resultado versus o prazer de realizar uma atividade e esse texto é uma espécie de retorno ao tema, só que dessa vez em primeira pessoa.
Essa experiência hard no modo competitivo não foi algo que planejei, mas que simplesmente aconteceu. Escrever esse texto foi uma forma que encontrei de organizar as minhas ideias sobre o que pensei e senti durante essas semanas onde me tornei um jogador especialista.
Espero que além de dar um bom conteúdo, que sirva de reflexão para aqueles que se vêem, sem ter decidido isso conscientemente, gastando compulsivamente mais tempo do que gostariam em uma atividade.
Lhama em um Parágrafo
Para aqueles que não conhecem essa pequena jóia do Reiner Knizia, sobre o qual eu tambem já escrevi, é um joguinho de cartas onde cada jogador recebe seis cartas e seu objetivo é se livrar delas, pois representam pontos negativos. Você faz isso jogando na sua vez uma carta igual ou um número maior do que a que está visível na mesa. No fim da rodada, se você tiver cartas na mão ganha fichas por suas cartas diferentes (duplicatas não contam) e se você bate, pode se livrar de uma ficha (seja a que vale 1 ou a que vale 10). Quando alguém faz 40 pontos o jogo acaba e quem tem menos pontos vence.
Parece um jogo simples, e é. Mas ele pede que tome decisões excruciantes e, quando você consegue manipular o fluxo das cartas a seu favor, é muito gratificante. O mecanismo de devolver fichas permite viradas sensacionais, fazendo dele um excelente jogo de bar ou família.
O que é o BGA Arena?
Para quem não conhece, o BGA Arena é um formato para partidas competitivas, onde existe um ranking separado por divisões, onde você vai escalando os níveis a medida que vence. Ao chegar na última liga, a “elite”, você passa a disputar por pontuação com os demais participantes até o fim da temporada, quando é definido um campeão e todos os jogadores “descem” uma divisão e tem seus resultados gerados para uma nova temporada.
Os jogos sempre são jogados com as mesmas configurações e número de jogadores e os jogadores são enturmados de acordo com a sua posição no ranking, sempre que possível. Normalmente, 3 ou 4 vitórias seguidas te levam para a divisão de cima. Durante a temporada ninguém é rebaixado, mas perde pontos dentro da divisão, tendo mais trabalho para conseguir subir.
Eu nunca tinha jogado sequer uma partida de arena antes de setembro deste ano, quando resolvi tentar o Lhama. Passei rápido pela liga bronze (precisei de umas seis partidas). A prata foi um pouquinho mais demorada, mas nada demais. Na liga ouro, levei alguns dias, mas difícil mesmo foi passar da Diamante para a Elite.
Fiquei vários dias num perde e ganha constante, quando tive a primeira sacada: Lhama é um jogo onde embora a técnica vença a longo prazo, as partidas são curtas e ninguém está livre do azar. Isso traz algumas consequências:
- Você precisa jogar defensivamente. Ficar buscando bater todas as mãos é o caminho do desastre.
- Jogar com jogadores menos experientes não necessariamente aumenta sua chance de ganhar uma mão específica. Quando você já está no alto do ranking, deve-se evitar jogar com adversários muito mais fracos, pois os pontos que você ganha com a vitória não pagará aqueles perdidos com as derrotas.
Comecei então a limitar, através das configurações, a chance de jogar na arena contra adversários de elo baixo. Isso melhorou minhas chances e, depois de vários altos e baixos, no dia 14 de setembro, cheguei finalmente à Liga Elite. Minha estratégia foi boa, minhas vitórias contaram muito ponto e eu já entrei lá em terceiro lugar. No embalo, ganhei mais duas partidas e estava lá, no topo do mundo!
I am the king of the World!
Quando cheguei em primeiro, fiquei muito contente, mas algo em mim dizia que aquilo era um momento efêmero. Foi relativamente fácil chegar ali, eu havia jogado bastante (umas duzentas partidas), mas ainda dentro do meu padrão “normal” de tempo que gasto com o BGA. Até esse momento não senti uma pressão de competição, cheguei ali quase naturalmente.
Pensei que logo um dos que estavam ali perto de mim iriam tentar me passar. Nada, ninguém se mexia. Eu também não via porque me arriscar, comecei a jogar apenas fora da arena. Foi nesse período que consegui chegar a ter o 5o. ELO do sistema, sendo o jogador com mais partidas com um ELO tão alto.
Aqui convém uma explicação: o BGA usa um fator que aumenta o seu ganho (ou perda) de ELO nas primeiras partidas. A lógica é que ele ainda não sabe o seu retrospecto, então ele tenta te colocar no patamar certo mais rápido. Em jogos de estratégia mais pura, isso faz todo o sentido, mas num jogo como o Lhama, gera algumas distorções, e os jogadores de ELO mais alto costumam ter um número baixo de partidas. Normalmente, são pessoas que, independente de sua qualidade (que pode existir ou não), tiveram uma sequência boa de partidas e aparecem lá no alto. Em algum momento, eles regridem a média.
Para mim, chegar ao 5o. Lugar de ELO com mais de 200 partidas foi um feito até maior do que liderar a arena, sinceramente.
Os dias foram passando e eu fui me acostumando com a ideia de ser “o melhor jogador de Lhama do mundo”, por mais ridículo e absurdo que isso possa parecer, mas tinha o ranking, não tinha? Era eu que estava no topo. A gente vai se convencendo disso.
Nesse meio tempo, fui atacado por apenas um jogador (o que está no topo do ranking nesse momento que escrevo). Ele me passou uma vez. Eu fui jogar uma partida, ganhei, e recuperei o posto. Passaram mais uns dias, o cara sumiu das primeiras posições, apareceu de novo, chegou a me passar, joguei uma partida, venci e passei de novo.
Comecei a achar que, como dizem os tricolores cariocas, “era o destino”…
A ira dos deuses
Os gregos possuíam os conceito de hubris, que basicamente é o sentimento que personifica a arrogância, o orgulho imprudente.
Os deuses gregos eram insuportáveis. Um de seus prazeres era justamente tentar os humanos, ajudá-los a chegar perto da glória para ver se ele se mantinham humildes e tementes a eles, Quando, quase que invariavelmente, os humanos finalmente falham acreditando afinal de contas ter algum mérito em suas conquistas, se enchendo de hubris, a punição vem imediata e inexorável.
A lenda de Ícaro que achou que podia com implemento humano, asas construídas pelo seu pai, chegar perto do Carro de Apolo (o Sol) talvez seja o mito mais famoso onde esse pecado apareça.
Temo dizer que sofri o mesmo destino! O tal adversário, o único que realmente me desafiou nesse tempo todo, voltou à carga e me passou. Se eu ficasse parado e ficasse onde estava, estaria em segundo lugar até agora. Eu achei que podia competir. Mesmo que perdesse uma ou outra, ia conseguir me manter e ficar ali por perto.
Resultado, entrei numa sequência de más partidas, caí para o centésimo. Consegui me recuperar, cheguei a ficar no top 20 duas vezes, até cair de novo e agora, aparentemente sem chance de retorno. No último dia da temporada, tentando conciliar partidas e o trabalho, acabei perdendo vários jogos por tempo (eu não sou tão maluco assim, a prioridade é o trabalho), culminando com partidas onde realmente joguei mal, acabei terminando na 140a. posição.
Valeu a pena?
Quando perguntavam a Sir Edmund Hillary porque se devia subir o Everest ele respondia “Porque ele está lá, ora bolas!”. É da natureza humana querer conquistar desafios e se tornar proeminente, seja porque precisamos de sentido na vida, porque Deus nos inspira ou porque, como meros primatas, somos seres hierárquicos, que precisamos saber “qual é o nosso lugar na fila do pão”.
Joguei mais de 500 partidas de Lhama nessas últimas 4 semanas. Foi em vão?
Não. Eu me testei, vi do que sou capaz, aprendi um pouco mais sobre mim mesmo e sobre até que ponto eu quero ir nesse tipo de coisa. Isso pode ser menos charmoso, mas provavelmente será mais valioso que um eventual troféu digital a mais ou a menos no BGA.
O que Aprendi?
- Jogar é uma coisa, competir é outra
Jogar é uma diversão. Você está com os amigos, conversa, come, se diverte, quando cansa, para. O resultado do jogo só é importante até 5 minutos depois da partida acabar. Você quer ganhar, mas esse não é o motivo pelo qual você está ali.
Competir, ainda que você não receba um centavo sequer, é uma espécie de trabalho. Você não joga o que quer, na hora que quer, contra quem quer. O objetivo não é o jogo, é o resultado. É como se fosse um emprego, você pode até gostar do que faz, mas não faz como gostaria, faz o que vai atender a necessidade de quem te paga (ou no caso da competição, o que aumenta sua chance de vencer a competição).
Eu acho engraçado quando vejo alguém se surpreender porque os jogadores de futebol jogam peladas nas férias. “Eles já fazem isso o ano todo!”. É verdade, mas na pelada ele pode fazer o que quiser, não o que o técnico mandou. Sua carreira não está em risco se ele perder um gol feito, ou tomar um frango. É totalmente diferente.
- Realmente aprendemos mais com as derrotas do que as vitórias
É muito difícil mudar um hábito enquanto o resultado é bom. A derrota exige que você reveja seus conceitos. Não existe aprendizado real sem stress. É pena, mas é verdade.
Quando você precisa do resultado, você não vai tentar coisas novas. Você não quer arriscar. E isso, a longo prazo, diminui sua capacidade de reagir a novas pressões e necessidades. É preciso experimentar e as derrotas, se tivermos humildade para isso, são a desculpa que precisamos para rever nossos conceitos.
Hoje eu jogo bem melhor do que no dia que virei primeiro do ranking. Só melhorei porque peguei adversários melhores, que me fizeram rever algumas coisas que fazia e tive que desenvolver novas técnicas. O ser humano precisa da competição para não ficar preguiçoso.
- Jogos de bar não são bons para competições “sérias”
Preciso, ao menos parcialmente, dar crédito aos europlayers empurradores de cubo dessa vez. É muito ruim perder porque você recebe seguidamente mãos ruins enquanto adversários bem piores que você batem o tempo todo fazendo barbaridades porque as cartas vieram melhores para eles.
No Lhama, se você jogar várias vezes com os mesmos adversários, aquele que tiver melhor entendimento do jogo provavelmente terá melhores resultados, pois ele saberá diluir o efeito de mãos ruins e maximizar mãos boas. Só que nenhum jogador consegue evitar uma partida ruim, mesmo jogando o melhor que puder. A partida de 40 pontos foi projetada para o jogo ser divertido e não para garantir uma correta avaliação de performance!
Talvez seja possível criar um esquema alternativo de regras para diminuir a volatilidade do resultado. Partidas maiores, talvez, ou a possibilidade de “foldar” mãos muito ruins antes de começar o jogo, ainda que perdendo alguns pontos. Com as regras atuais, uma mão ruim é o suficiente para te botar pressionado a ter que bater para ter chance de não ficar em último ou penúltimo e uma segunda mão ruim torna isso muito difícil. Num sistema onde quem está em cima está em melhor situação se não se arriscar, é muito difícil recuperar uma queda.
Embora pareça choro (e talvez seja, pelo menos um pouco), a ideia não é essa. O cara que me tirou do primeiro lugar no ranking também passou por um processo semelhante ao meu, mas ele teve tempo (e garra, principalmente) para se recuperar. A pergunta é se dá para ter uma regra onde se evite tantos altos e baixos (ao mesmo tempo que o jogo não perca a sua graça).
Que fique claro, isso não é um problema do jogo, esta não é a sua proposta. O Knizia não o criou pensando em uma competição como o BGA Arena. É um jogo de boteco, que você joga conversando e tem decisões interessantes a tomar, mas as consequências não deveriam ser tão importantes assim. O erro está em querer que o jogo seja algo que ele não é, que é o que eu acabei fazendo.
- Se você QUER competir, se dedique e pague os preços
A competição é algo muito estimulante, mas cobra um preço alto.
Durante um mês, basicamente o que eu fiz foi jogar Lhama. Não toquei piano, joguei muito pouco outros jogos, até mesmo o futebol americano, que eu gosto passar o domingo assistindo, ficou em segundo plano. O negócio era subir no ranking, no ELO ou jogar mais para aprender algo.
Isso não chegou a níveis patológicos. Eu continuei fazendo meu trabalho, saí com minha esposa, etc. E, talvez, tenha sido essa a diferença. Alguém se dedicou mais do que eu.
Se vai competir, o pior não é ser derrotado. É achar que não fez tudo o que podia. Eu fiz, dada a vida que tenho e o que pretendo com isso. Então, não tenho remorsos, não fico pensando que podia ter ficado parado em segundo lugar. Não teria graça nenhuma.
Eu não comecei a jogar achando que podia disputar o título. Eu entrei ali de zoeira e, de repente, me vi ali no topo disputando. Me deixei levar por um mês, mas não é para isso que eu jogo.
Se a disputa é o que você quer, prepare-se para jogar muito o mesmo jogo, para não deixar os resultados alterarem o seu entendimento e, se o resultado for muito importante para você, lembre-se que qualquer outra coisa que você fizer, você vai lembrar que podia ter treinado um pouco mais.
Eu não sei qual é o certo para todo mundo, mas encontrei o certo PARA MIM. Eu sou um jogador social. Esse tipo de competição acaba me fazendo mais mal do que bem.
Conclusão
Bem, por duas semanas, eu pude dizer, com evidências, que eu fui o melhor do mundo em uma coisa que eu faço! Foi uma experiência inesquecível, que provavelmente nunca mais irá se repetir.
A gente tem mania de olhar sempre para o que poderia ter sido melhor, mas será que teria graça ser o segundo, terceiro, décimo do ranking, sem ter tentado ser o primeiro, depois de ter passado um tempão no topo do ranking? Sinceramente, não.
Foi uma jornada bacana, desde o tempo que jogava Bridge não me dedicava tanto a um só jogo. Consegui jogar em alto nível (mais do que no Bridge, com certeza) e aprendi muita coisa no processo, não só sobre o jogo em si, mas sobre mim mesmo e sobre o papel dos jogos na minha vida.
Por fim, é legal às vezes deixarmos a maré das circunstâncias nos levar por algum tempo, mas sempre temos que estar de olho e retomar, conscientemente, o rumo de nossas vidas.
Nossa vida não é ditada pelos deuses. A húbris não é punida por eles, nós é que nos tornamos complacentes e pagamos por isso. Ao mesmo tempo, se não soubermos o que queremos, vamos acabar pagando preços por projetos ou demandas que não escolhemos conscientemente.
Somos donos do nosso destino!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!