Observando o comportamento e as reações dos hobbistas, bem como a forma como os jogos modernos vêm evoluindo, a impressão que me dá é que, para a maioria das pessoas, os jogos valem literalmente quanto pesam!
Isso ficou muito claro para mim na semana passada quando vi diversas pessoas discutindo o valor das recém lançadas expansões de Viticulture, “Visitantes do Charco” e “Visitantes do Vale do Reno”, pela Grok. A reclamação que mais ouvi foi que elas seriam “muito caras para tão poucas cartas”.
Isso só é um exemplo recente de algo que acontece repetidamente. As pessoas parecem precisar de um elemento físico para justificar o que estão pagando. Deve ser por isso que o dono da oficina sempre troca uma peça do seu carro quando você leva para ele ver um defeito.
Sabendo disso, as editoras e designers vem alterando seus produtos para maximizar o quanto aceitamos pagar por eles. Durante o processo de design do Tapestry, o Jayme Stegmaier fez uma enquete entre seus seguidores “o que você espera que um jogo que custa 60 dólares lhe traga?”.
Resposta vencedora: “miniaturas coloridas”.
“As you wish” disse o lorde Sith do marketing board gamístico mundial. E tacou 18 miniaturas que só servem para ocupar espaços em um tabuleiro lateral de cada jogador.
Não é à toa que a cada ano que passa, os jogos se tornam maiores, mais visualmente chamativos, mais complexos e… mais caros. Lançamentos como Nemesis, Gloomhaven e Tainted Grail exemplificam bem o que estou tentando mostrar.
Nesse mundo de jogos cada vez mais complexos é bom quando encontramos jogos que nadam contra a corrente, apresentando design simples e elegantes, cujas regras podem ser explicadas rapidamente sem que isso signifique que o jogo é bobo.
Elegância é ser bonita por dentro e por fora (Coco Chanel)
Nesse artigo vamos tentar definir o que seria “elegância” no design de board games e citar alguns jogos, sem nenhuma intenção de ranqueá-los, onde eu reconheço um design elegante, que eventualmente pode aparecer até mesmo em um jogo extremamente complexo.
Embora a tendência de jogos mais complexos e caros seja algo com o qual vamos conviver ainda por um bom tempo, valorizar jogos que entreguem uma ótima experiência sem precisar de tantos apetrechos e complicações é algo que pode nos ajudar a economizar, seja revisitando os títulos que já temos ou buscando jogos mais simples no mercado e com isso equilibrando as tendências.
Com o mercado crescente, com certeza há espaço para todos os tipos de produtos!
O que é um design elegante?
Conceitos abstratos são quase sempre de difícil definição. À medida que tentamos encapsular tudo numa única frase, sempre deixamos espaço para exceções a qual um espírito de porco trará um contra-exemplo para derrubá-la.
Poderia fazer simplesmente como Potter Stewart, o juiz americano que declarou que “posso não saber definir o que é pornografia, mas sei reconhece-la quando a vejo”, mas acho que isso seria muito preguiçoso. Prefiro pegar algumas definições que encontrei em alguns artigos e compartilhá-las com vocês. Ainda que incompletas, elas dão uma ideia clara do que estou querendo dizer.
“Elegância: disposição marcada pela harmonia e leveza nas formas, proporção das partes e no movimento; donaire, garbo, graça.” (Dicionário Oxford)
“Elegância é sobre encontrar a solução para um problema com a maior economia possível de esforço e custo”
“Uma solução elegante é aquela que é robusta, eficiente e gera um mínimo de efeitos colaterais”
Confesso que a que eu mais gostei foi a frase da Coco Chanel, que usei mais acima: “Ser elegante é ser tão linda por dentro como por fora!”. Embora seja uma frase de efeito e esteja muito voltada ao conceito estético, ela capta algo realmente importante do significado de elegância, que é a importância da coesão, da coerência e do equilíbrio.
Saindo da moda e arquitetura e voltando aos board games, cito a definição dada por Anthony Ferrise em um post intitulado “My 15 top most elegant games” (tive que adaptar ao traduzir para passar a mesma ideia – quem quiser ver o original, o link para o artigo está nas referências):
“Um jogo elegante é aquele que tem um conjunto de regras simples e poucas barreiras de entrada ao mesmo tempo em que traga escolhas não triviais aos jogadores, permitindo que diversas abordagens possam ser tomadas”
Em um outro artigo chamado “Designing Elegant Board Games”, do site www.theboardgameworkshop.com, o autor sumariza seus conceitos em seis pontos principais:
- Evite dar tarefas sem graça aos jogadores.
- Tudo deve ser claro, visualmente e conceitualmente
- Quanto mais as mecânicas do jogo estiverem interconectadas, mais coeso o jogo é.
- Incorpore as regras dentro dos componentes que as utilizam
- Não deixe o fluxo do jogo ser interrompido.
- Corte as partes chatas!
Pequena Lista (não exaustiva) de Jogos Elegantes!
Devido a abstração do conceito, achei que seria mais fácil apresentar exemplos do que considero jogos elegantes, então montei uma pequena lista de 6 jogos, alguns clássicos, alguns bem recentes, a maioria muito conhecida e pelo menos um acredito que nem tanto. Tentei ficar em jogos que joguei recentemente, para não ter que pesquisar demais, portanto não precisa ficar chateado se o seu jogo preferido não aparece aqui!
1 – Carcassonne: uma obra-prima de design. O jogo pode ser entendido quase como um quebra-cabeças coletivo: na sua vez, pegue uma peça e a coloque de modo coerente no tabuleiro, tentando com isso criar/completar uma cidade, uma estrada, um monastério ou um campo.
É um jogo que pode ser ensinado em 5 minutos, mas que você levará uma vida inteira para dominar, principalmente se for jogá-lo de forma competitiva, no formato tradicional de 2 jogadores.
2 – Azul: o vencedor do Spiel de 2018 é um abstrato que também se baseia em turnos simples. Na sua vez, escolha uma das fábricas de azulejos e pegue as peças da mesma cor, jogando as demais para o centro do tabuleiro.
O fluxo do jogo é interrompido apenas quando as peças acabam e acontece uma contagem de pontos. Novas peças são colocadas e o jogo continua, até que alguém complete uma linha do seu tabuleiro.
3 – Low Lands: Alocação de trabalhadores não é a mecânica mais pródiga em produzir designs elegantes, pois esses jogos normalmente precisam de muitas fases de manutenção e de exceções relativas a lugares que possam ser utilizados por mais de um jogador, ações que possam ser utilizadas parcialmente, etcetera. Porém, em Low Lands, jogo lançado em 2018 pelo casal Claudia e Ralf Partenheimer, encontramos uma exceção a essa regra.
Os jogadores são criadores de ovelhas na Holanda e precisam ajudar na construção de diques evitando que a maré destrua seus rebanhos. Com apenas 3 recursos, 1 produto e as 5 ações possíveis sendo realizadas no tabuleiro individual, sem nenhum tipo de concorrência pelas ações, os autores criaram um jogo extremamente interativo, pois a eficiência das ações depende muito do que os seus adversários estão buscando. O aspecto semi-cooperativo da construção do dique é muito bem implementado e sua resolução é crucial para o desfecho da partida.
Se você achou que o jogo lembra algo do Uwe Rosenberg, você não está errado. Ele colaborou com o designer do mesmo e escreveu uma recomendação ao jogo, incluindo-o na sua “biblioteca essencial”. Para mim, é um caso onde o aprendiz superou o mestre.
4 – Onitama: jogo que consegue criar uma espécie de “mini-xadrez” moderno. Num tabuleiro 5 por 5, dois grupos de praticantes de artes marciais disputam para eliminar os rivais ou invadir com seu mestre o QG inimigo. As peças são iguais, mas os movimentos variam entre os 5 “golpes” sorteados no início da partida.
Quando um jogador utiliza um “golpe” (movimento), ele o cede para o seu adversário. Usar os movimentos na hora certa, evitando que eles possam ser utilizados pelo rival é uma das coisas mais interessantes desse jogo.
5 – Century Spice Road: o primeiro jogo dessa série é sensacional em seu minimalismo. Você ou compra cartas, ou as utiliza para poder adquirir ou realizar trocas de especiarias (representadas por 4 tipos de cubos) ou entrega os cubos para resgatar cartas de contratos. Os turnos se sucedem rapidamente e o desafio de montar um engine eficiente para completar os contratos versus a tentação de pegar novas cartas é extremamente gratificante.
Um jogão que infelizmente se perdeu no tsunami contínuo de lançamentos.
Há controvérsias sobre qual o melhor jogo da série mas o primeiro é com certeza o design mais elegante de todos eles.
6 – Noctiluca: esse jogo é o favorito da minha esposa, que estava invicta nele até a semana passada, quando consegui quebrar essa escrita.
Embora ele tenha bastante dados coloridos, o jogo se resume praticamente a eles. Basicamente, eles são rolados e dispostos em um tabuleiro em grupos de 4 ou 5 representando planctons de tipos de diferentes (suas cores) enquanto os números dos dados representam o nível de profundidade onde eles estão. Os jogadores representam mergulhadores coletando os plânctons para completar potes que precisam de cores específicas. A cada turno o jogador escolhe uma rota para seguir e pega os dados da rota que sejam de um mesmo valor a sua escolha.
É um jogo muito simples mas que apresenta um belo quebra-cabeça. Ele possui um mecanismo que evita que um jogador pegue dados que não precisa para atrapalhar o adversário. Ao pegar dados que ele não tem onde jogar, deve doá-los ao jogador seguinte.
Embora tenha um pouquinho de AP, é um jogo que agrada bastante tanto a quem joga coisas maiores como a quem nunca jogou nada antes.
Conclusão
Moda é uma coisa que passa com o tempo, mas a elegância persiste. Jogos elegantes tendem a vencer o teste do tempo e serem jogados por muito mais anos do que aqueles que são lançados para atender um capricho contemporâneo.
No momento em que escrevo esse artigo (junho de 2021) vejo vários colegas de Hobby excitadíssimos com o jogo “The Witcher”, lançado em financiamento coletivo pela Conclave (o Covil fez uma live com o Cristiano Cuty, da Conclave, para tirar dúvidas sobre o jogo e você pode consultá-la aqui).
The Witcher é o jogo típico dessa tendência atual de jogos hipertrofiados e caros. Ele é baseado numa IP, vem cheio de miniaturas e cobra de seus apoiadores uma taxa mínima de 800 reais para uma versão simplificada do jogo (os monstros vem como tiles) ou 1400 na sua versão principal (os monstros são miniaturas).
Nada contra o lançamento, que é maravilhoso! O que eu pergunto é: esse é o padrão de qualidade que precisamos ter em um jogo mainstream? É isso que realmente o jogador médio vai colocar nas mesas nas poucas horas livres que a vida moderna nos permite para jogar? São esses os jogos que devem prioritariamente ocupar a pauta dos geradores de conteúdo em detrimento de jogos fisicamente menos atraentes?
Eu acho que não. Jogos como esse atendem a um nicho bem específico do mercado. Não são para todo mundo. Eu não acho legal que a média do mercado se encaminhe para jogos desse tipo.
Sem acusações, eu também tenho jogos desse estilo, mas confesso que eles costumam ser as piores relações de custo-benefício da minha coleção. Esses jogos costumam ter setups difíceis, as regras complexas, dependem de você ter um grupo específico, que curta o lore da história e por aí vai.
Pelo menos comigo, por melhores que sejam, eles ficam comendo poeira na estante, enquanto jogos como os que eu citei nessa lista eu consigo jogar quase toda semana ou sempre arrumar uma mesa no BGA.
Por isso, viva a elegância! Eu proponho que valorizemos um pouco mais os jogos que nos divirtam sem precisar apelar tanto para as sensações visuais e tácteis, que o seu brilho esteja em soluções bem sacadas com pouco recursos (que podem ser bonitos, porque não?), mas que não custam quase um salário mínimo.
Referências
Seguem aqui alguns artigos que utilizei na pesquisa do tema. O primeiro é um artigo sobre elegância em artes visuais e decorativas, mas que traz conceitos que podemos aproveitar no nosso tema. O segundo faz a mesma coisa mas no ramo da modelagem de sistemas. Os dois últimos são relativos ao mundo dos boardgames, um com uma lista de jogos elegantes (diferente da minha), e o outro é um resumo de um podcast com vários designers sobre o tema, o James Stegmaier entre eles.
1 – What Elegance is and why you need it in your life – Disponível em https://www.houzz.com/magazine/what-elegance-is-and-why-you-need-it-in-your-life-stsetivw-vs~92521286
2 – On Suffience and Elegance in System Design – Disponível em https://www.researchgate.net/publication/274657413_On_Sufficiency_and_Elegance_in_System_Design
3 – My top 15 most elegant games – Disponível em https://boardgamegeek.com/geeklist/225058/my-top-15-most-elegant-games
4 – Designing Elegant Board Games – Disponível em https://theboardgameworkshop.com/designing-elegant-board-games/
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Ótimo texto! Parabéns Eduardo e Covil!
Obrigado, Leo!
Gostei do texto. Também tenho sentido isso… que estou indo meio contra a maré atual dos lançamentos, apesar de estar em alguns desses FCs hahah.
Dentro dessa tendencia mais abrangente de jogos hipertrofiados, daria pra fazer uma divisão do tipo de hipertrofia: produção e escopo pros Ameris, e excesso de mecânicas e complexidade pros Euros.
Airton,
Você colocou muito bem. Os Euros vem sofrendo uma escalada de complexidade em termos de regras e mecanicas. Em relação a escopo e produção, acho que é uma coisa geral. Até os party games estão ficando hipertrofiados (veja o wavelenght, por exemplo).
No fundo, cabe a nós consumidores decidir o que é valor agregado ou não. O ganho de qualidade dos jogos nos ultimos anos foi realmente importante, mas cabe a nós evitar as caudas de pavão.
Obrigado pelo comentário!
Excelente texto… contive a sanha de ser o espírito de porco, hehehe. Boas escolhas nos exemplos!!!
Valeu, Paulinho!!
Maravilha de texto, me identifiquei com os mesmos pensamentos onde acredito que estamos passando dos limites, quando um jogo de tabuleiro ultrapassa a barreira do valor de um salario mínimo…e estamos achando que é normal, pois os valores são explicados por planilhas de custos, impostos, etc…
Também possuo jogos caros onde são deixados de lado em detrimento a outros mais simples e menos badalados.
Parabéns pelo texto.
Eu não vejo problema nenhum de a pessoa comprar algo que seja relativamente caro, mas que realmente agregue valor a sua vida. Se é um jogo que ela vai curtir muito, porque ela adora a historia, vai fazer a campanha inteira, vai lhe manter entretida por meses.
Infelizmente, para muitos de nós, isso não é verdade. A alegria termina 5 minutos depois de abrir a caixa. O jogo vai para a estante e o novo frisson vai ser quando uma nova encomenda chegar na semana seguinte.
O excesso do colecionismo é algo que precisamos combater no hobby. Não é justo esperar isso das editoras. Elas só alimentam uma carência que é nossa. Cada um de nós que precisa saber qual o que é um consumo saudável pra si mesmo.
Muito lúcido. Obrigado pelas reflexões.
Obrigado, Marcus!
Bom demais o texto, Eduardo, parabéns. Eu tenho um pensamento e já me meti em uns batebocas sobre esse tema. Imagina só se o Terra Mystica fosse um produto desta safra? Cada facção teria suas miniaturas únicas ricamente esculpidas; imagina a caixa para as 14 fortalezas, 14 santuários, etc.
Eu não duvido que ainda produzam algo assim. Provavelmente vai ser muito caro, um item para colecionadores.
O problema é que as versões retail estão ficando cada vez mais caras (mesmo lá fora, vamos tirar o custo Brasil da equação), porque elas vem com cada vez mais coisas que, para quem só quer jogar o jogo, talvez sejam excessos.
Usando o exemplo do The Witcher. A questão não é o jogo ter uma versão normal e uma deluxe e sim o preço de partida ser tão alto. Porque, é fato, ele traz realmente muita coisa e isso reflete no preço.
O que aconteceria se eles lançassem uma versão retail a 450 reais sem miniatura nenhuma? As pessoas veriam com bons olhos, como uma oportunidade de ter o jogo por um preço menor? A turma que diz que só liga para mecânica ficaria satisfeita?
Posso estar enganado, mas eu enho a impressão que não.