Como qualquer indústria de massa, a produção de jogos de tabuleiros modernos está sujeita a modismos.
Às vezes o modismo é temático: jogos de exploração espacial, jogos de zumbi, jogos de fazendinha… Basta sair um jogo com um tema que caia no gosto do povo que logo temos dezenas de jogos com o mesmo tema.
Outras vezes é uma determinada mecânica que cai no gosto do povo. A última moda foi a dos jogos de “roll/flip & write”. Nos últimos dois anos tivemos uma verdadeira avalanche de jogos com essa mecânica.
Como toda moda, tem aqueles produtos que são realmente bons e inovadores (que justificam a moda) seguidos por uma grande cauda de produtos derivativos, que na maioria das vezes ficam entre o aceitável e o dispensável.
A nova moda parece ser a combinação de duas das mecânicas mais populares nos jogos de tabuleiro modernos na última década: Deck Building (Construção de Baralho) e Work Placement (Alocação de Trabalhadores). Tivemos dois grandes lançamentos esse ano usando essas mesmas ideias: As Ruínas Perdidas de Arnak -The Lost Ruins of Arnak (que está chegando ao Brasil agora pela Devir) e Dune Imperium (do qual eu ainda não tenho informação, embora já tenha ouvido dizer que vem para o Brasil).
Será que o uso das mesmas mecânicas faz com que os jogos concorram entre si pelo mesmo espaço na coleção? É isso que vamos tentar responder nesse artigo!
O Jogo do Indiana Jones, sem o Harrison Ford
As Ruínas Perdidas de Arnak (Lost Ruins of Arnak), jogo desenvolvido por Min & Elwen, um casal de funcionários da CGE, é o jogo de estreia da dupla como designers. E que início de carreira eles estão tendo!
Com tema de exploração onde o deck building e a alocação de trabalhadores são tão complementares que é difícil dizer se uma se impõe em relação a outra como mecânica principal (se eu forçado a escolher, diria que o Deck Building é levemente mais importante).
Nesse jogo, cada jogador chefia uma equipe de arqueólogos que estão explorando um arquipélago perdido em busca de relíquias e pergaminhos para fomentar suas pesquisas. Para isso, eles precisam se deslocar com automóveis, barcos e aviões, negociar ou atacar guardiões e usar seus ganhos para descobrir os grandes segredos do Templo. O jogo possui 5 rodadas e vence quem tiver mais pontos de vitória ao final.
O jogo é bem temático se levarmos em consideração que é um euro sem nenhum elemento narrativo específico. O tema aparece basicamente na forma como a exploração (a alocação de trabalhadores), os itens e artefatos (o deckbuilding) e a pesquisa (a trilha de tecnologia) se relacionam entre si.
Um ponto crítico do jogo é que você só possui dois trabalhadores por rodada e isso não tem como ser aumentado (uma ou outra carta permite uma alocação extra, mas não dá para contar muito com isso) e eles servem tanto para pegar recursos como para explorar novas ilhas. Saber usá-los bem é muito importante, porque você sempre estará no conflito entre usá-los para gerar recursos ou para explorar novas ilhas.
Embora seja extremamente importante no jogo, o deck building é tratado de forma bem leve. Existem dois tipos de cartas, itens (que são comprados com dinheiro) e artefatos (que são “achados” com as bússolas, essas representando a exploração realizada). Enquanto os itens vão direto para o baralho (e não para o descarte, como é comum em jogos de deckbuilding), os artefatos são usados imediatamente. Praticamente todas as cartas valem pontos de vitória.
A exploração gasta, além do trabalhador, bússolas (para abrir novos locais) e transportes, que são um uso alternativo para as cartas (todas as cartas podem ser usadas para o seu uso principal, ou como transportes, de acordo com os símbolos que elas possuam). Gerir esse detalhe é bem importante, principalmente enquanto não se conquistam os ajudantes (que lhe dão recursos ou transportes extras).
Como as cartas compradas não vão para o descarte e o baralho inicial é muito pequeno, a maioria das cartas pode ser usada na rodada seguinte em que são compradas. As cartas tem poderes bem legais e trazem muita variação nas possibilidades do jogo.
Por fim, resta a trilha de pesquisa. Cada jogador possui 2 marcadores na trilha, a lupa e o livro, sendo que o segundo nunca pode ultrapassar o primeiro. Para subir cada nível, é necessário pagar os custos e em troca, além de pontos, sempre há um benefício. No último nível, além de uma pontuação regressiva (quem chega primeiro ganha mais), existe a possibilidade de se comprar tabuletas que valem muitos pontos (contando que você tenha os recursos para tanto).
Já vi muita gente dizendo que a trilha de exploração é onde se define o jogo. Eu reconheço que ela é muito importante, você não pode ignorá-la totalmente, mas é possível ganhar o sem ser o primeiro nela. Eu tive uma vitória onde fiquei dois degraus abaixo do cara que chegou no topo (eu tinha muitas cartas e venci 3 guardiões).
Eu joguei até agora umas 5 partidas e me parece que jogo permite muita variação de estratégia, mas você sempre precisará fazer pelo menos um pouco de tudo.
As Ruínas Perdidas de Arnak foi indicado ao Spiel des Jahres deste ano (no KennerSpiel, lógico) e parece o jogo talhado para vencer a competição. É um jogo que agrada tanto a jogadores sérios como aqueles que preferem uma jogatina um pouco mais casual.
A produção é fenomenal e valoriza ainda mais um jogo onde tema e mecânica se encaixam muito bem. O Kennerspiel estará em boas mãos caso se torne mais um artefato de Arnak!
Lords of Arrakis?
Paul Dennen, o autor de Clank!, tem em Dune Imperium (2020) mais um exemplo da versatilidade do Deck Building para o desenvolvimento de jogos interessantes e variados
Neste jogo, cada jogador é um nobre lutando para ter influência entre as facções que dominam Arrakis (o nome “oficial” de Dune) e para vencer as batalhas decisivas pelo controle das diversas regiões do planeta e da sua preciosa commodity, o spice!
Tematicamente, o jogo emula, de forma bem abstrata, o antigo Dune, jogo de 1979 que foi relançado em 2019. (Eu tive a oportunidade de jogar esse jogo na Gencon Online do ano passado com os designers. Foi uma baita experiência e uma grande humilhação! De forma muito inocente acabei pegando uma facção muito difícil e não tive chance nenhuma. Mas a partida foi bem divertida e os caras foram muito legais.)
Além disso, é inevitável lembrar-se de Lords of Waterdeep ao jogar Dune Imperium, principalmente devido a as fatídicas cartas de intriga! Elas são bem variadas e permitem diversas “caxangas” durante a partida, ainda mais porque este é um jogo de pontuação baixa.
O jogo é uma corrida para obter 10 pontos de vitória, que podem ser obtidos subindo na trilha de influência das facções e vencendo as batalhas. Essas são resolvidas de uma forma bem abstrata, de acordo com a quantidade de tropas que cada jogador coloca para combater em cada batalha.
Nesse jogo, a alocação de trabalhadores é claramente a mecânica principal. O deck building está ali para suportar essa alocação, pois em cada jogada é necessário usar um trabalhador e uma carta (e é esta que define que tipo de ação o trabalhador poderá realizar). E a competição pelos locais é ferrenha.
As cartas não utilizadas servem como recursos ao final da rodada. Normalmente estes servirão para comprar novas cartas, ou para aumentar a força nos combates.
Embora ele esteja em segundo plano em relação a alocação de trabalhadores, o deckbuilding em Dune é muito mais técnico. Comprar cartas a esmo não é uma boa ideia, porque é bem difícil girar o baralho. Existe apenas uma carta que dá ponto de vitória e ela é muito cara, além de não servir para mais nada (tipo as cartas de ponto do Dominion).
A principal função do jogador é saber escolher em que batalhas ele vai entrar, pois elas são custosas e seus prêmios são bem variados (nem todas elas dão pontos de vitória). Para vencer os combates é preciso recrutar tropas e ativá-las. Isso pode ser feito como consequência de algumas ações do tabuleiro ou de consequências no uso das cartas.
Uma coisa que me incomodou é o fato que não há como competir pela ordem de jogador. Cada um é primeiro uma vez e passa o first player para o colega do lado (estilo stone age). Arnak também é assim, mas ali eu não sinto que isso seja tão importante como achei em Dune.
Uma coisa que eu negligenciei na minha partida e que me arrependo foi não ter buscado mais cartas de intriga. Elas são muito importantes. A jogada decisiva da partida em que joguei aconteceu através de uma carta dessas, onde meu adversário conseguiu uma força de combate absurda, eliminando por completo as minhas chances.
Embora eu só tenha jogado no TTS, eu tive a impressão de que a produção, embora seja de bom gosto, não parece tão elaborada quanto a do Arnak. Mas nada que atrapalhe, o jogo é bem agradável visualmente e tudo está coerente com o tema.
A diferença está nos detalhes
Embora tenham semelhanças mecânicas, os jogos oferecem experiências bem diferentes.
Arnak, sem deixar de ser um jogo para gamers, tem um quê de casual. Não que ele não possa ser jogado de forma bem competitiva, mas a sua variação de cartas e as escolhas de design, que permitem uma montagem de baralho mais relaxada, mantém jogadores menos técnicos com chances de vencer ao final. Sua interação é totalmente indireta, e normalmente há mais de uma forma de buscar os mesmos recursos. É um ótimo jogo para se apresentar a quem já mordeu a isca dos gateways e quer conhecer um jogo com uma complexidade um pouco maior. Uma ótima pedida para dois casais num sábado a noite!
Já Dune é um jogo de cracudos. A montagem do baralho é importantíssima, um baralho inchado vai te deixar a ver navios. E a alocação é muito ferrenha. Um block bem dado significa uma rodada perdida para o adversário. E a interação é bem mais direta, principalmente na decisão dos combates. Cada pontinho é ganho de forma árdua, e alguns deles ainda podem ser perdidos, se alguém lhe ultrapassa nas trilhas de influência.
Conclusão
Sim, invoquei o espírito de São Lukita para terminar esse artigo!
Do jeito que o mercado se expandiu, todos nós precisamos repensar nossos critérios de compra. Não dá para comprar tudo. A menos que você tenha recursos (e espaço) quase infinitos, a coleção precisa ser curada e as compras feitas de forma consciente.
Então, cabe discutir: os jogos são ótimos, OK, mas eu preciso ter os dois? NÃO! Ninguem “precisa” de jogo nenhum! Ter jogos é um privilégio, não uma obrigação!
Dito isso, eu entendo que Arnak e Dune ocupem espaços diferentes numa coleção, pois embora exista uma boa sobreposição, eles propõem experiências bem diferentes. Arnak é um jogo que atinge muito mais pessoas, Dune oferece um desafio bem mais técnico e com mais interação.
Um fator que pode ajudar na decisão é que ambos os jogos são bem dependentes de idioma e Arnak já possui versão em português. O jogo está sendo lançado aqui pela Devir e seu preço sugerido está por volta de R$600,00. Num contexto onde Stone Age foi reposto a R$500,00, o preço está até, digamos, “interessante”.
A minha sugestão final é que você JOGUE ambos, mas não compre por impulso.
Procure-os nas plataformas digitais: Arnak está no BGA; Dune Imperium depende do TTS, mas o público-alvo dele não se assusta com isso depois de um ano e meio de pandemia.
Tenha pena do seu dinheiro e da sua estante!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!