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Nos idos de 1984, eu tinha 12 anos quando assisti, junto com meus pais, a minha primeira soirée. O filme foi “Amadeus”, de Milos Forman, contando, de uma forma um tanto quanto especulativa, a vida e a morte de Wolfgang Amadeus Mozart, um dos maiores gênios musicais que já pisaram no Planeta Terra.
Aos mais novos, cabe uma explicação: soirée é como se chamava uma sessão noturna de cinema – ao contrário da matinée, que seria na parte da manhã ou início da tarde, sendo essa dedicada às crianças e aquelas aos adultos – então, sim, ir numa sessão noturna e acompanhar meus pais num chopinho (eu tomei guaraná, lógico) foi sim um rito de passagem.
O cinema era o imponente Odeon, com seus dois andares, tela gigante e lotado com gente até no Lustre, como diria Nelson Rodrigues. Nada demais, pois Amadeus era o grande favorito ao Oscar. E o filme não decepciona, é nada menos do que espetacular, e ganhou 8 merecidas estatuetas.
O chopinho dos meus pais, a felicidade de me sentir um pouco adulto, o filme em si, tudo isso foi legal, mas o que mudou minha vida para sempre foi que, naquele dia, eu conheci a ópera.
Amadeus tem cenas maravilhosas de algumas das óperas de Mozart. Aquele espetáculo multimídia em pleno século XVIII me fascinou, passei a procurar tudo sobre ópera e nunca mais olhei para trás. Já fui a Manaus, a Nova Iorque e Viena quase que exclusivamente para ver óperas. É uma paixão ainda maior que a dos boardgames, que eu devo ao senhor W.A. Mozart.
Mozart foi talvez o mais prolífico dos compositores. Tendo vivido apenas 35 anos, deixou mais de 500 obras catalogadas. Boa parte são obras-primas embasbacantes, como suas três óperas principais: As Bodas de Fígaro, Don Giovanni e Flauta Mágica.
A maior parte do público conhece Mozart não por suas obras grandiosas, como essas óperas ou a sensacional Sinfonia Júpiter, a última que compôs. Mozart é muito famoso por suas obras menores: Um pequeno Serão Musical, Rondo alla Turca, etc. São músicas acessíveis e geniais que permitem que qualquer ouvido pouco treinado ouça uma vez e não esqueça nunca mais quem é aquele rapaz de peruca branca.
O Mozart do Board Game Moderno
Não, você não está no lugar errado. Esse artigo é sobre board games sim, senhor! Toda essa reminiscência não foi uma mera desculpa para falar de outras das minhas obsessões, mas para fazer um paralelo entre a carreira do compositor austríaco com nome de licor de chocolate e um outro artista germanico, o designer de board games Reiner Knizia.
Como Mozart, Knizia possui uma carreira extremamente prolífica. Alemão de nascença, mas vivendo na Inglaterra desde 1993, matemático de formação, o “Doutor” se tornou um designer full-time em 1997, quando largou uma bem sucedida carreira no mercado financeiro para se dedicar somente a produção de jogos.
Não há indícios que o mercado financeiro londrino tenha sentido falta desse matemático alemão, mas o mundo dos board games com certeza não seria o mesmo sem esse insaciável produtor de jogos: em aproximadamente 30 anos de carreira, ele já lançou mais de 700 jogos no mercado. O documento no seu site oficial contendo a lista com todos os seus jogos e versões (contando as diversas línguas em que foram lançados) possui 67 páginas!
Obviamente ele não faz isso sozinho. Knizia possui um grande estúdio, que o ajuda a desenvolver e testar suas ideias de jogos, deixando-o livre para criar novas ideias sem ter que executar a parte mais pesada do processo de criação de jogos (desenvolvimento e teste). Infelizmente, Mozart não tinha o mesmo tipo de suporte: apenas um ou dois alunos mais avançados, que serviam de assistentes (que muitas vezes compunham as partes mais repetitivas das obras sob a supervisão do mestre – isso é um procedimento comum em toda história da arte – o mito do artista que faz tudo sozinho aparece no romantismo e se mantém como um fetiche até hoje).
A Importância dos Fillers
Embora Knizia seja um designer eclético, tendo em seu nome todo tipo de jogo imaginável, nesse artigo eu vou destacar dois jogos que, no jargão do Hobby, nos acostumamos a chamar de “fillers”: são aqueles jogos que “preenchem” o tempo entre os jogos programados para a noite.
Os jogadores experimentados tendem a ver esses jogos apenas como uma espécie de hors d’oeuvre lúdica, preparando os cérebros para os rigores do prato principal que virá depois, ou como um vinho do porto no final da refeição, para terminar a noite de uma forma menos intensa.
Eu entendo o papel que esse tipo de jogo tem nas mesas mais experimentadas, mas não acho que ele seja sua principal função. Não são todos, mas boa parte dos fillers funciona como “jogo de entrada” (o termo gateway vem caindo em desuso devido a conotação pejorativa por remeter ao tráfico de drogas). São aqueles jogos que você pode apresentar a quem não está acostumado a jogar jogos modernos.
Kariba e Lhama, os dois jogos que vamos discutir aqui, têm em comum o fato de pertencerem a essa categoria de jogos rápidos, de regras simples, mas que escondem segredos que aparecem apenas na forma de decisões interessantes que o jogador precisa tomar para aumentar suas chances de vitória. Além disso, ambos foram trazidos para o Brasil pela Paper Games.
Para quem quiser ler um pouco mais sobre os fillers em geral, sugiro o texto “The Overlooked Value of Filler Games”, do site Art of Board Gaming.
Sai da Minha Poça
Em Kariba, os jogadores jogam na mesa cartas que representam bichos que vão até aquelas poças d’água gigantes que existem nas savanas africanas para beber água, se banhar, etc.
O jogo é apresentado de forma bem minimalista. Você monta uma espécie de octógono, que representa a poça de água, com cada aresta servindo como o espaço para uma das oito espécies do jogo (representadas pelos naipes das cartas): camundongos, preguiças, zebras, girafas, avestruzes, onças, rinocerontes e elefantes.
O baralho do jogo possui 64 cartas, divididas nos 8 naipes, sendo que todos os bichos estão representados na mesma quantidade e todas as cartas do mesmo naipe são equivalentes, mas os naipes são organizados por tamanho: o camundongo é 1 e o elefante é 8.
Cada jogador recebe 5 cartas e no seu turno coloca uma quantidade qualquer de cartas do mesmo naipe na poça, repondo a mão ao final da jogada.
Se, ao fazer sua jogada, o bando do animal cuja carta foi colocada estiver com tamanho maior ou igual a 3, o primeiro grupo de bichos de menor valor que este é afugentado da poça. Com uma exceção: quando juntam 3 ou mais camundongos, o elefante se assusta com eles e foge! Essa é a única situação onde um bicho menor assusta um maior.
O jogador que causou essa fuga recebe as cartas desses bichos e coloca a sua frente. Essas cartas representam os seus pontos de vitória. Cada carta vale um ponto.
O jogo vai assim até que algum jogador fique sem cartas (quando o monte acaba, o jogo continua, mas as cartas não são repostas). Cada um conta quantos bichos afugentou e quem afugentou mais bichos é o vencedor.
Parece simples e na verdade, é simples. Mas não é bobo. A malícia está nas entrelinhas.
Quando você faz uma jogada para afugentar um bando, você cria oportunidades para seus adversários, pois o bando que você aumentou pode ser usado para afugentar um outro grupo, como também serve como um alvo para um grupo de animais maiores (ou do rato, no caso do elefante).
É importante bloquear possíveis jogadas de pontuação colocando cartas entre bandos com mais de uma carta, para evitar que o adversário se aproveite dessa situação.
A dinâmica do jogo varia bastante com a quantidade de jogadores. Jogando em dois jogadores, muitas vezes vale a pena dar uma “assistência” para o adversário, porque ele fatalmente deixará uma jogada ainda melhor para você. Com mais jogadores essa jogada também é possível, mas se torna mais arriscada. É preciso ter mais bandos se formando na poça para ela dar certo.
Enfim,embora o jogo possa ser jogado de forma totalmente casual à medida que você joga, você descobre padrões táticos que permitem vantagem ao jogador mais experimentado, tornando Kariba um jogo que não enjoa, apesar de sua simplicidade!
“Mico Preto” Gourmet?
Lhama é um jogo onde você precisa se livrar das suas cartas para não fazer pontos negativos. Tanto o nome do jogo como seu personagem principal na verdade advém de um trocadilho em alemão: L.L.A.M.A. é a abreviação de “Lege alle Minuspunkte ab”, ou “livre-se dos pontos negativos”!
Em Lhama as cartas existem 7 tipos de cartas: as numeradas de 1 a 6 e as lhamas. Cada um recebe seis cartas e a carta do topo do baralho é aberta.
No seu turno, o jogador deve colocar em cima da carta que está aberta uma carta de igual valor ou a carta subsequente. Isto é, se a carta da mesa é um 3, ele deve colocar, um 3 ou 4. A lhama vem depois do 6 e depois dela volta ao 1.
Se na sua vez o jogador não tem uma carta que sirva para ser baixada, o jogador precisa tomar uma decisão: ou ele compra uma carta do baralho e passa a vez ou desiste da jogada, entregando sua mão. O jogo continua até que alguém consiga se livrar de todas as cartas, ou que todos menos um tenham desistido. Nesse caso, o jogador que sobrou ainda pode descer cartas na mesa, mas não pode mais comprá-las, tendo que desistir se não tiver cartas que possam ser descidas.
Segue então a pontuação: cada jogador perde pontos pelas cartas de valor diferente que tiver. Cartas repetidas não pontuam. As cartas numeradas valem seu valor nominal e a lhama vale 10 pontos, funcionando como uma espécie de micro preto. A pontuação é gerenciada através de fichas: as fichas brancas valem um ponto, as fichas pretas valem 10 pontos.
Se alguém conseguiu “bater”, isso é, ficar sem cartas, tem o direito de se livrar de uma ficha à sua escolha (isto é, se livrar de 1 ou 10 pontos).
Joga-se uma nova rodada. A partida termina se ao fim da rodada alguém está com pelo menos 40 pontos. Então conta-se a pontuação de todos os jogadores e quem tiver menos pontos vence a partida.
Muita gente quando joga a primeira vez acha que o jogo é só de sorte. Não é. Existem vários detalhes a serem considerados.
A decisão de sair ou não da rodada depende muito de quantos pontos você tem e de quanto tempo vai demorar para alguém bater. Normalmente vale a pena entregar a mão quando se está com poucos pontos, a menos que você precise bater desesperadamente.
Quando se tem as duas cartas possíveis de serem jogadas, também é preciso decidir. Se você jogar a carta menor, é provável que a carta maior seja pulada até que a mão volte pra você. E ela vale mais pontos. Se você tem cartas repetidas, talvez seja melhor se livrar da que você só tem uma. É preciso estar sempre de olho em quantas cartas os adversários ainda possuem.
Assim como Kariba, Lhama tem sua dinâmica variando bastante com a quantidade de jogadores. Com 2 é um jogo super apertado, pois você pode controlar melhor a evolução das cartas (se a carta da mesa é 1 e você tem o 1 e 2 na mão, você sabe que se jogar o 1, vai conseguir jogar o 2 depois – isso não é garantido com mais jogadores).
Lhama tem vantagem de aceitar mais do que 4 jogadores, o que não acontece no Kariba (tem gente que joga assim, mas fica caótico demais).
Conclusão
Lhama e Kariba foram dois dos jogos que eu mais joguei presencialmente em 2020. São fáceis de transportar, fáceis de explicar e, pelo menos a mim, não enjoam.
Entre os dois, eu acho que o Kariba é um pouco mais interessante, pois ele exige do jogador prestar atenção nas cartas que já saíram e permite um pouco mais de estratégia, principalmente na variante com cartas de compra abertas.
Já o Lhama tem a vantagem de ter partidas um pouco maiores, pois à medida que a pontuação cresce, os jogadores se arriscam mais em tentar bater para se livrar das fichas e jogo. Além disso, atende a mais pessoas.
Se não apresentam um desafio estratégico de um Arte Moderna ou Tigris & Euphrates (duas obras-primas do Doutor Knizia), eles oferecem um passatempo divertido e boas decisões aos jogadores. São jogos simples e baratos e merecem frequentar sua mesa.
Parabéns a Paper Games, que vem acertando muito nos lançamentos desses jogos mais simples, mas que nem por isso se tornam menos interessantes!
Por fim, os dois jogos possuem gameplay em vídeo no Covil dos jogos:
Notas: Kariba – 3.7/5 Lhama – 3.5/5
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Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!