
Em julho de 2020, quando eu ainda estava engatinhando por essas páginas, sob o choque de ter minha vida virada ao avesso com a pandemia – tenho dúvidas se eu realmente me adaptei – uma das válvulas de escape que tive foi a jogatina online.
Minha mulher não gosta muito de jogar, e os meus grupos de jogo evaporaram. Cenário aterrador para quem jogava pelo menos 2 vezes por semana e achava pouco. Porém, como diz a Reverenda Madre de “A Noviça Rebelde”, “Quando Deus fecha uma porta, abre uma janela”.
Graças aos o Torneios do Covil, me aproximei de uma nova turma de parceiros, que se tornaram amigos, e que consegui ainda misturar com outros amigos da “vida real” e hoje temos um grupo super bacana de pessoas para quem os pontos em comum são mais importantes que as diferenças e que se ajudam de diversas maneiras, mesmo todos morando longe um do outro e com a maioria nunca tendo se encontrado em carne osso. Esse é o mundo moderno!
Lá no início, nos reunimos para treinar para os torneios mas, aos poucos, fomos descobrindo os interesses comuns e começamos a jogar alguns euros.
Dessa forma, ensinei o Teotihuacan para uns, o Russian Railroads para outros e um pequeno grupo de jogadores de Euros se formou. Alguém sugeriu tentarmos o Lewis & Clark, jogo que acabou de ser lançado aqui pela Meeple BR, numa nova edição (eu vou falar sobre as diferenças mais a frente).

Mesmo ressabiados em jogar um jogo que ninguém conhecia direito, aceitamos o desafio. E, surpresa, o jogo é muito bom! Não é perfeito, nem para qualquer jogador. Pelo menos na versão original, pode ser extremamente punitivo. Mas, se você curte um jogo de corrida com planejamento extremamente apertado, vai gostar de Lewis & Clark.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Lewis & Clark é um jogo que trata o seu tema com tanto carinho que é quase impossível não se interessar pela história que ele conta.
No início do século XIX, os recém fundados Estados Unidos da América resolveram comprar da França a Louisiana (que na época não representava apenas as cercanias de New Orleans, mas praticamente 30% do território norte americano atual – veja o mapa abaixo).
Esse enorme terreno era praticamente inexplorado e era o desejo do Presidente Thomas Jefferson que os americanos efetivassem aquele investimento adentrando o Oeste e chegando no pacífico.
Para isso, ele convocou o Capitão do Exército Meriwether Lewis para liderar uma missão de exploração, com os objetivos de estudar os povos nativos, a botânica, a geologia, as terras e a vida selvagem da região, além de avaliar qual o risco de interferência de caçadores e exploradores ingleses e franceses (vindos do Canadá). Em termos geográficos, o objetivo era explorar o curso do Rio Missouri e a comunicação de águas fluviais com o Oceano Pacífico.
Resumindo, o homem era o Capitão Kirk do Oeste. Só faltava (além da Enterprise) achar um imediato. Na falta de um Vulcano, ele chamou o segundo-tenente William Clark para a função.
A aventura durou 3 anos, de 1803 a 1806. Saindo de Illinois e Saint Louis, dois grupos se juntaram em St. Charles e seguiram o Rio na direção oeste. Lewis publicou seus diários de viagem, o que permite que se conheça a história com grande riqueza de detalhes.
O jogo usa todos esses elementos de uma forma espetacular. É um dos melhores trabalhos de ligação entre mecânicas e temas que eu já vi.
O JOGO
Lewis & Clark é um jogo de corrida. Mas não é um Sprint, é uma maratona, a ser resolvida com perseverança e logística.
Cada jogador é o líder de sua própria expedição e tenta seguir o caminho através do Rio e das Montanhas até o ponto onde os expedicionários fundaram o Fort Clatsop, no Oregon. Vence quem chegar primeiro e acampar ali com toda a expedição.

Sendo uma expedição grande em terreno inexplorado, havia enormes problemas logísticos. Era necessário enviar batedores à frente do grupo principal, verificando o caminho e os eventuais perigos. Além disso, é preciso gerenciar com muito cuidado as cargas, evitando carregar peso ou pessoas acima da capacidade planejada.
É esse conflito entre o conforto de ter os recursos e a dificuldade de carregá-los que traz a beleza e a dificuldade do jogo. Você precisa fazer um planejamento muito cuidadoso para não sofrer atrasos. Por causa de um recurso a mais ou a menos, é comum você perder 3 ou 4 rodadas para arrumar a casa.
A mecânica principal do jogo é a gestão de mão e o deckbuilding. Cada jogador começa com seis cartas, que representam 6 personagens do jogo. Eles permitem que você colete recursos, progrida seu batedor e recrute índios para lhe ajudar. As cartas podem ser usadas tanto pela sua ação, como para servir de “força de trabalho” para ativar um outro personagem. A cada jogada você precisa usar sempre duas cartas, então você sempre está abdicando de alguma ação dentre as possíveis que você tem
Você pode sempre recrutar novos personagens, contanto que pague os recursos para tanto. Mas lembre-se: quanto mais gente na expedição, mais jogadas você precisa fazer para movê-las sem causar atrasos. E se o movimento já não é muito fácil no Rio, a coisa piora muito quando chega nas montanhas.
Não importa quanto você tenha conseguido andar com seus batedores, você concretiza seu movimento quando “acampa” (que significa recolher as cartas utilizadas, como no Century Spice Road). Nesse momento, se você conseguiu usar os seus recursos de forma a não ter excedente de carga e se todas as cartas e índios foram utilizados, você conseguirá alcançar os batedores. Senão, eles terão que voltar para trás. Em casos extremos, eles podem voltar para ANTES do acampamento.
A sua capacidade de carregar cargas e índios pode melhorar com a aquisição de barcos. Mas há limites e é muito importante respeitá-los. Um acampamento ruim pode afundar suas chances no jogo.
Um outro detalhe muito legal do jogo é que as cartas jogadas têm símbolos que reforçam as ações de coleta de recursos. Não só as suas, mas as dos colegas ao seu lado (no estilo 7 Wonders). Então, manter uma longa fila de cartas abertas facilita a vida dos adversários. Você tem que achar o equilíbrio entre o ciclo que precisa fazer para se movimentar, ao mesmo tempo que quer girar seu baralho mais rápido.
Faltou falar dos defeitos.
- O jogo é bem punitivo: Como eu disse acima, um erro de cálculo pode lhe custar 3 a 4 jogadas para resolver o problema. E isso normalmente é fatal. O que leva ao segundo problema…
- Alto Downtime: exatamente por te obrigar se planejar bem, você perde bastante tempo organizando as ações. Como a situação do tabuleiro e das cartas utilizadas mudam constantemente, por mais que você consiga antever as jogadas, sempre terá que reavaliá-las quando chegar a sua vez. Eu me preocupo em não ser APzudo, mas nesse jogo é quase impossível evitar isso.
- Tempo de Jogo: com 4 pessoas é bem comum passar de 3 horas. Acho que com 5 pessoas se torna inviável. Quero testar ainda com 3 que não sejam novatos, que acredito que deva ser a melhor experiência de jogo.
Pelo que vi na página da editora sobre a nova edição do jogo, essas questões foram mitigadas. A principal mudança é que ao invés do seu batedor ter que voltar atrás quando você tem excesso de carga, você ganha tokens de penalidade que terá que pagar eliminando-os antes de conseguir se movimentar de fato. As outras mudanças são cosméticas para adaptar o tabuleiro a essa nova mecânica e a presença de novas cartas (provavelmente para reequilibrar o jogo).
Estratégia
As cartas permitem uma variação imensa de estratégias. Você pode construir canoas, comprar cavalos, trocar cavalos por canoas, dar presentes para os índios lhe ajudarem, e por aí vai.

Como primeira estratégia, sugiro tentar jogar com um deck de 8 ou 10 cartas, e com pelo menos uma delas que te dê a opção andar com seu batedor mais de uma vez, de preferência nas montanhas (e se for de força 3, melhor ainda).
Jogando assim, ganhei uma das partidas e fiquei em segundo em outra. Isso não é pouco, teve gente que mal saiu do lugar em algumas partidas.
Na primeira partida, eu peguei cartas demais, o que me atolou por completo quando cheguei nas montanhas. Jogar com poucas cartas é possível, mas você fica muito dependente de pegar índios ou da colaboração dos adversários.
Todas as cartas são boas, mas algumas parecem ridiculamente poderosas. O jogo tenta equilibrar isso com a ida ao pajé (uma ação de índio), que permite copiar a ação de uma carta em jogo (sua ou de qualquer adversário).
Eu não joguei a versão nova, todas essas dicas são relativas a primeira versão do jogo mas, pelo que li, acredito que ela torne o planejamento um pouco mais maleável.
Carregar peso demais pode compensar, se você vai conseguir gerar movimento suficiente no ciclo seguinte para pagar os tokens de penalidade e seguir em frente. Sem ter jogado, o timing correto para fazê-lo me parece ser o momento de sair da montanha, pois você poderá pagar as penalidades andando no rio, o que costuma ser mais fácil. Mas isso é algo que teremos que confirmar nas partidas.
Arte e Conclusão
Como joguei apenas no BGA, não vou comentar sobre a qualidade dos componentes, mas posso dizer que o projeto artístico do jogo é estupendo. A arte das cartas e o tabuleiro são belíssimos. As ações dos personagens fazem sentido com o que eles fizeram na realidade, tornando cada partida uma recriação da aventura real.

O script do BGA tem algumas pegadinhas (como sempre acontece nesses jogos mais complexos), mas é bem funcional. Ele permite que você desfaça as jogadas e exige que você confirme quando vai fazer um acampamento que vai lhe obrigar a recuar. Vai ter evitar alguns bons desastres, acredite!
Uma das coisas que mais gostei é que, na maioria dos jogos, o desafio é conseguir o máximo de recursos possíveis. Em L&C, quase nunca esse é o problema. O desafio é como usá-los de maneira ótima, aproveitando seu deck ao máximo! Isso é uma mudança de paradigma muito interessante para os jogos de tabuleiro e é um aspecto que não vejo ser tão falado nos reviews desse jogo.
Enfim, há muito o que explorar em Lewis & Clark. Enquanto estivermos presos na pandemia, tempo em casa é o que não falta no fim de semana. Por que não o gastar revivendo uma exploração épica nos rios e bosques do Oeste americano?
Até porque não vamos poder viajar tão cedo…
Nota: 4.25. Se a nova versão diminuir o downtime sem perder a essência do jogo, provavelmente irá para 4.5.
Estamos na Fase Final do Prêmio Ludopedia! Agradeço a todos que votaram na gente e peço que considerem confirmar seu voto na segunda fase!
https://www.ludopedia.com.br/votacao

Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Adoro os seus textos Eduardo e o L&C foi compra certa pra mim. Aguardando a pandemia dar uma apaziguada pra chamar a galera pra jogar esta belezura.
Grande Abraço.
Douglas,
Obrigado pelo feedback!!
Sds,
Eduardo
Esse é um dos jogos que mais me chamou a atenção nos últimos tempos! A proposta de implementação de um tema histórico tão particular aguçou a minha curiosidade por ser bem inusitada e apresentar uma produção incrível, muito bonita mesmo! Infelizmente ele não está no meu radar no momento, estou me programando para adquirir alguns outros títulos antes, mas quero muito conhecê-lo para saber se o jogo é tão bom quanto parece hehehe Parabéns pelo excelente texto, como sempre!
Obrigado Adalfan!
Realmente, com tantos lançamentos, precisamos escolher bem o que vamos comprar.