Brass em termos literais, significa latão, que é um metal formado por uma liga de cobre e zinco. Entre outras coisas, o latão é usado para construir instrumentos musicais como trompas, trombones e tubas (não por coincidência, conhecidos como “brasses” ou “metais” no linguajar da música sinfônica).
Talvez por estes instrumentos estarem ligados na música a momentos mais heroicos ou militares, “brass” também pode significar “ousadia”. E, num inglês mais antiquado, “brass” era sinônimo de “dinheiro”. “grana” ou “bufunfa” seriam traduções bem adequadas – mas você pode ficar com a imagem do “vil metal” para entender o título e a foto da Elis Regina (cantando “Como nossos Pais”).
No mundo dos Board Games Brass é o nome da obra-prima de Martin Wallace, um jogo sobre a construção de fábricas e rotas de escoamento da produção tendo como cenário a Inglaterra da Revolução Industrial e fazendo com que todos os significados da palavra convirjam no estado da arte dos jogos de tabuleiro modernos.
Brass na verdade é um jogo de 2009, que embora brilhante mecanicamente, era meio feioso e estava fora do radar da maioria dos jogadores até que em 2017 a Roxley Games fez um primoroso trabalho de modernização do jogo, alterando completamente a sua arte e fazendo pouquíssimos ajustes de regras para lançá-lo como “Brass Lancashire”.
Logo depois, ela lançou “Brass Birmingham”, que é um novo jogo com praticamente os mesmos conceitos, mas com um novo mapa, mais opções estratégicas e importantes variações de regra em relação ao original. Este na verdade foi desenvolvido por 2 outros autores (Galvan Mall e Matt Toman) com o Martin Wallace mais dando consultoria do que trabalhando diretamente no design.
Nesse artigo, vamos deixar de lado a versão original (que eu só conheço através de um aplicativo horroroso que vendem na Steam) e falar das duas versões atualmente em catálogo, ambas trazidas para o Brasil pela Conclave em 2019.
Quem me acompanha sabe que os dois “Brasses” formam uma entidade dual que o ocupa o top 1 do meu ranking (Se “Deus pode ser ao mesmo tempo três”, porque o melhor jogo não pode ser dois? Adeptos de Gaia/TM, não atirem a primeira pedra!).
Esse não é um artigo que vai detalhar aspectos táticos e estratégicos, pois ainda não me sinto pronto a fazê-lo. Nem saberia dizer se é um review, pois me falta a imparcialidade necessária para julgar esse jogo.
É apenas uma ode ao meu jogo favorito, que agora eu consigo jogar no TTS, já que um chinês de alma caridosa colocou um mod do Brass Birmingham na Steam.
Vou explicar aqui os principais conceitos do jogo e falar um pouco da sua dinâmica e dar algumas dicas para quem for jogá-lo, sem ser exaustivo. Para esse artigo usei apenas o fruto da minha experiência.
Conceitos e Contexto Histórico
As duas versões do jogo se passam ao norte da Inglaterra, num período que cobre a maior parte do século XIX.
Nesse período, a Inglaterra desfrutava de duas vantagens competitivas importantes:
a) Possuir uma quantidade imensa de empreendedores que aproveitaram os conhecimentos teóricos adquiridos nos últimos 200 anos para criar máquinas e as oportunidades de negócio advindas da mecanização.
b) Ser o país que dominava os mares em todo o planeta, com o Império Britânico atingindo seu apogeu e criando mercados para os produtos criados mecanicamente com as novas invenções.
O que os jogos têm em comum:
- Eles se tratam da construção de fábricas e linhas de transporte para os seus insumos e produtos
- Ambos se passam em duas eras: a “Era do Canal”, anterior ao desenvolvimento das locomotivas, quando o transporte de cargas pesadas era realizado por balsas atravessando rios e canais (que muitas vezes eram construídos artificialmente – um bom exemplo disso é o famoso “Canal du Midi”, na França) e a “Era do Vapor”, quando o advento das ferrovias aumenta significativamente os custos e a eficiência das redes de produção. Nesse texto, usaremos indistintamente esses nomes ou apenas “Era Um” e “Era Dois”.
- O turno é composto de duas ações e o mecanismo de gestão das cartas para realização das mesmas.
- Os diversos elementos de interação não-negativa, pois tudo que se produz ou cria fica no tabuleiro, podendo ser utilizado por qualquer jogador, limitado às regras de transporte.
Os jogos se passam na mesma época (1770 a 1870) e no mesmo país, mas em locais diferentes, diferentes: Brass Lancashire representa o cenário onde a exportação têxtil da Inglaterra para os mercados externos foi mais significativa (e isso é representado no jogo pelos Portos e pela demanda dos mercados externos).
Já Brass Birmingham acompanha o que acontece nas cidades mais no interior do centro-norte da Inglaterra, onde a distância para os portos fez com que o atendimento a indústria têxtil estivesse em certa desvantagem com relação ao primeiro cenário, mas em compensação existia uma economia um pouco mais diversificada e voltada para o mercado interno. Isso explica as mercadorias (caixas), a cerâmica e a cerveja, bem como os entrepostos comerciais serem cidades sem saída para o mar.
Isso se reflete bem nos jogos. Enquanto no primeiro a competição pelos principais pontos do mapa e a corrida para atender a demanda externa fazem o jogo se tornar muito apertado, no segundo a economia mais diversa permite alguma diversificação e com isso as questões de complementaridade (que existem também no original) se tornam fascinantes. O que o Birmingham tem de competição ferrenha é principalmente a corrida para a construção de ferrovias na segunda era do jogo e a desesperadora falta de cerveja para saciar nossos intrépidos trabalhadores!
Foge ao escopo desse artigo discutir as questões sociais da Revolução Industrial, mas se você quiser conhecer um pouco mais, sugiro a minissérie “The English Game”, da Netflix. Ela conta como ocorreu o desenvolvimento do futebol nessa região e isso está diretamente ligado ao desenvolvimento das fábricas (o time acima era de uma fábrica e o “cartola” – aqui, literalmente – era o dono!). A série não é 100% correta em termos históricos, mas dá uma ideia dos processos (bons e ruins) que modificaram totalmente aquela região.
O Jogo
Embora tenha toda pinta de um jogo econômico, Brass é na verdade um euro, pois a vitória é alcançada através da conversão dos seus feitos em pontos de vitória. O dinheiro é importante, mas vale muito pouco ao final de Lancashire (ou nada no caso de Birmingham).
Os pontos de vitória são conseguidos basicamente de duas formas: virando os tiles que você construiu (quando você exaure sua produção ou os vende, de acordo com a característica da indústria em questão) ou possuindo links que cheguem em cidades prósperas (cada tile virado e cada porto/entreposto gera pontos de link).
O turno de jogo consiste na realização de duas ações, à exceção da primeira rodada do jogo, quando se tem apenas uma. Em todas elas, você precisará descartar uma carta. Você começa com 8 cartas, gastará duas cartas por turno e as reporá, até que isso não seja mais possível, sendo que a era termina quando todos os jogadores gastam suas cartas.
As cartas são de dois tipos, cartas de cidade e cartas de indústria. Ambas se referem ao lugar ou a indústria onde aquela carta permite a construção. A única ação do jogo onde a carta que é jogada é relevante é na ação de construir. Saber avaliar que cartas reservar para construção e que cartas usar para as outras ações é uma das principais decisões do jogo.
As opções de ação são as seguintes:
a) Construir uma indústria: significa construir um tile na cidade indicada ou da indústria indicada. Quando se usa uma carta de indústria, é necessário que sua rede de logística chegue até o lugar escolhido. Você também precisa ter o dinheiro necessário e os recursos exigidos (que você pode aproveitar do tabuleiro ou comprar no mercado, respeitando as regras de transporte). As indústrias de insumos (carvão, ferro e cerveja) deixam sua produção à disposição no tabuleiro, virando quando esta termina, enquanto as demais precisam ser vendidas para serem viradas.
b) Construir um link: que pode ser uma balsa na primeira era ou um trem na segunda. Mecanicamente são iguais, a diferença é que o trem custa mais dinheiro e carvão (e cerveja, se você quiser fazer a ação dupla em Birmingham). Repare que no mapa existem algumas rotas que só estão disponíveis em uma das eras. É importante lembrar que as balsas ficam obsoletas e somem no fim da primeira era.
c) Desenvolver a Indústria: essa ação permite que você descarte tiles do seu tabuleiro, permitindo que você construa tiles mais avançados de forma mais rápida. É importante porque não há tempo de fazer tudo e essa ação permite tirar dois tiles de uma vez só a um custo muito baixo.
d) Pegar um empréstimo: essa é quase uma marca registrada do autor. Nesse jogo, os empréstimos são seus amigos. Você pega 30 dinheiros (no Lancashire pode ser menos, mas isso quase nunca faz sentido) e desce 3 níveis de renda.
e) Vender sua produção: é o momento em que você pontua os tiles da indústria de produtos e os seus portos/cervejarias. Em uma única ação você pode fazer várias vendas, contanto que tenha rotas e portos/cervejas disponíveis.
f) Explorar: basicamente, é uma ação para trocar cartas ruins por duas cartas coringa. Essa ação só existe no Brass Birmingham. No Brass Lancashire a inexistência dessa ação é compensada pela possibilidade de se gastar suas duas ações do turno para fazer uma única construção ignorando-se as cartas descartadas.
Sempre que um tile é virado, o dono do mesmo ganha um incremento na sua renda (que é obtida ao final de cada rodada) e pontos de vitória a serem contabilizados ao fim da era. Repare que seus tiles podem ser virados durante a jogada dos adversários, o que naturalmente te mantém atento ao que eles estão fazendo.
O primeiro nível das indústrias normalmente é exclusivo da primeira era do jogo (existe uma exceção). Esses tiles sairão do tabuleiro ao fim da primeira era e, caso ainda estejam no tabuleiro do jogador, precisarão ser desenvolvidos se o jogador quiser produzir aquele tipo de tile.
Eu não vou entrar nos detalhes das regras, mas é muito importante entender como os insumos (ferro, carvão e cerveja) são transportados. O Ferro “voa” no tabuleiro, não sendo necessária qualquer rede de transporte (a explicação temática era que ele era necessário em quantidades que permitiam o transporte por carroças).
Já o carvão, ele precisa chegar no lugar de construção, seja através de links seus ou dos adversários. É por isso que a colocação de links precisa ter o seu timing muito bem pensado, pois elas abrem oportunidades para todos. Tematicamente, a quantidade de carvão necessária exigia o transporte regular por trilhos ou canais.
A cerveja (que só existe em Birmingham) funciona como um híbrido dos dois produtos. Ela “voa” para o dono da cervejaria, mas precisa respeitar as linhas de transporte para os adversários. A explicação seria que existiam muitas fábricas de cerveja clandestinas, que só produziam para o seu dono e de acordo com o seu interesse. Mecanicamente, é muito importante que seja assim, pois quase sempre falta cerveja no final do jogo.
Ao fim de cada rodada, cada um ganha dinheiro de acordo com seu nível de renda, verifica-se a nova ordem dos jogadores (que depende de quanto cada um gastou na rodada, quem gastou mais joga por último), iniciando uma nova rodada.
O jogo segue nessa marcha até o fim da Era dos Canais, quando os pontos são contados e as balsas e indústrias de nível um saem do jogo. As cartas são embaralhadas, cada jogador recebe novas 8 cartas e a Era do Vapor o jogo segue para uma nova rodada, indo assim até o final.
Além de repetir a pontuação do fim da primeira era, no Brass Lancashire o dinheiro que cada um possui é convertido em pontos na razão de 10 por 1. No Birmingham, ele é apenas critério de desempate.
Algumas dicas
- Brass, em suas duas versões, é um jogo que depende muito mais da leitura da mesa do que de estratégias pré-definidas. Você sempre deve estar considerando a situação do tabuleiro para ver o que é mais interessante a ser feito. Por exemplo, não faz sentido produzir carvão do lado coleguinha que acabou de fazê-lo. Vocês dois estarão se atrasando.
- A beleza do jogo está em que você precisará de mais de duas ações para fazer algo de forma totalmente independente. E que, sendo os recursos finitos, os adversários poderão se aproveitar da infraestrutura que você criou antes que você possa utilizá-la. Há duas formas de lidar com isso: tentar se isolar num canto do tabuleiro, diminuindo as chances que as pessoas se aproveitem de você ou entender que isso faz parte do jogo e fazer as coisas de forma a se beneficiar disso.
- Um erro comum é a pessoa querer evitar a todo custo usar recursos do adversário, para não virar seus tiles. Na minha opinião, à exceção de situações de fim de era, onde a pontuação está muito próxima, virar o tile do amiguinho é um preço justo pelo dinheiro (ou pior, a ação extra) que você está economizando. E, repare, muitas vezes ele está torcendo para você NÃO FAZER ISSO (porque ele queria usar aquilo). Entender essas nuances é a quintessência desse jogo.
- Preste atenção onde vai colocar seus tiles de nível 1, pois eles saem do jogo no fim da Era do Canal. Certifique-se que você tem tiles de nível 2 ou acima em pontos estratégicos do tabuleiro para facilitar sua vida no início da Era do Vapor. Às vezes deixar uma carvoaria com estoque de uma era para outra faz toda a diferença para construir trilhos rapidamente!
- É importante estar atento a forma como a ordem de jogador é decidida. Quando você é o último a jogar, você tem a chance de, sabendo escolher suas ações, jogar para ser primeiro e executar dois turnos seguidos. Isso é muito poderoso e pode ser decisivo. Empréstimos, Vendas e Desenvolvimento costumam ser boas maneiras de ir para o topo da ordem de jogador, pois tem custo muito baixo (normalmente zero).
- É extremamente recomendável pegar pelo menos um empréstimo. A perda de renda é rapidamente compensada. Seu custo real é a ação que se perde.
- Atender as demandas do mercado de insumos é uma ótima forma de fazer dinheiro sem gastar ações.
Considerações Finais
“Assim, o mercador ou comerciante, movido apenas pelo seu próprio interesse egoísta (self-interest), é levado por uma mão invisível a promover algo que nunca fez parte do interesse dele: o bem-estar da sociedade.” (“A Riqueza das Nações”, Adam Smith)
Brass é a melhor representação que eu conheço, na forma de jogo de tabuleiro, da filosofia de Adam Smith. A economia não é um jogo de soma zero.
Talvez outros jogos ofereçam uma economia ainda mais sofisticada, como os 18XX. Eu não posso falar muito porque ainda não os joguei, mas, eu tenho a impressão esses acabam sendo jogos muito pesados e muito agressivos, com muita especulação financeira. Além disso, eu costumo achar que excesso de elementos complica demais o jogo sem melhorar a sua experiência. Brass tem o equilíbrio certo (pelo menos pra mim) entre complexidade e elegância.
Talvez esses jogos sejam mais realistas, mas me incomoda jogar algo que você está ali apenas para sacanear os adversários 100% do tempo. Questão de gosto.
Brass tem passada de perna? Sim, mas ele permite dar uns “beijos na boca” de vez em quando.
Por fim, a lição final do jogo está na pontuação. Dinheiro em si não serve para nada, é apenas um meio. Um vil metal. Riqueza é de fato é o que se produz com ela!
Veredicto: Um jogo (que são na verdade dois) quase perfeito. Nota 5/5!
PS1: Não desisti da série sobre o Xadrez, mas está difícil escrever. Acho que sai até final do mês!
PS2: Queria agradecer a todo mundo que comentou meus textos durante o ano de 2020. Se você gosta do nosso trabalho, peço que considere votar no Covil dos Jogos para o prêmio Ludopedia. Estamos concorrendo em todas as categorias de mídia.
https://www.ludopedia.com.br/votacao
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Ótima análise, de um jogasso!!!
Valeu Paulo!!
Muito bom Eduardo! Vou considerar mais seriamente adquirir pelo menos um desses da sua santíssima dualidade. Abraço!
Marcelo,
Sua fé com certeza será recompensada!
Sds,
Eduardo
Ótimo texto. Fiquei curioso para jogar.
Anderson,
Só marcar!
Sds,
Eduardo
Opa Eduardo, aqui é o Guilherme que estava falando contigo na Ludopedia.
Parabéns pelo texto! Brass é obra-prima.
Opa! Você é o rapaz do 18XX?
Vamos combinar! Manda um email para mim: evieira@infolink.com.br
Uau! Excelente texto, fiquei ainda mais empolgado para jogar o Brass! Uma pena que está difícil encontrar uma cópia!
Adalfan, agora tem o app no steam! Está muito bem implementado, quebra um galhão!