O assunto hoje é sobre as formas de classificar os jogos, o quanto essa ferramenta nos ajuda a entendê-los e por quanto tempo esses sistemas de classificação se mostram eficazes em nos dizer os que os são e que tipo de experiência eles nos proporcionam.
Após uma breve conceituação e proposição de algumas ideias, vou usar dois estudos de caso sobre os quais frequentemente discuto no dia a dia:
- Teotihuacan é ou não um jogo de alocação de trabalhadores?
- A dicotomia Euro vs Ameritrash ainda é uma classificação relevante?
Organizar para que?
Em um artigo anterior (“A Vertigem dos Rankings”) comentamos sobre a tendência humana em fazer listas, classificar e ranquear as coisas que o rodeiam. Caso não tenha feito isso antes, eu humildemente recomendo que leia o artigo, pois falo um pouco sobre isso lá. Mas, caso não queira fazê-lo, segue o básico: o ato de organizar os objetos em listas e grupos é praticamente inerente aos seres humanos e é isso que nos ajuda a compreender melhor o mundo.
“A Classificação pode ser definida como a reunião de objetos ou seres com características semelhantes e a separação das não afins”. Essa é a definição dada por James Duff Brown, um bibliotecário escocês, pioneiro da Biblioteconomia e criador do Sistema Unificado Inglês.
Classificar então é juntar os semelhantes. Mas semelhantes em que? Depende do que você pretende com a organização que você vai dar.
Se você for organizar os seus discos (crianças, o titio aqui é velho, do tempo dos LPs) em ordem alfabética do nome do Artista ou Banda pode ser uma boa ideia se a sua preocupação é, a qualquer momento, achar um disco específico na estante. Mas, se você é um DJ, talvez seja melhor organizar os seus discos pelo tipo de música que eles contêm, ou até pelo pitch das músicas que você utiliza nos seus mixes. NÃO EXISTE CLASSIFICAÇÃO DEFINITIVA.
No ramo dos jogos de tabuleiro, usamos diversos conceitos de classificação diferentes, muitas vezes de forma sobreposta. O BGG oferece diversos sistemas de classificação diferentes: categorias, mecânicas, famílias, etc. Se você prestar atenção, logo perceberá que as categorias não são definidas de forma muito consistente. E elas obviamente estão sobrepostas. São quase como tags colocadas nos jogos para facilitar a sua consulta em grupos.
Embora meu comentário possa parecer crítico, na verdade o que o BGG fez já é um imenso passo de organização. É MUITO DIFÍCIL CRIAR UM SISTEMA DE CLASSIFICAÇÃO 100% CONSISTENTE.
Segundo Aristóteles, toda categorização que se faz tem dois atributos: a extensão e a compreensão. A extensão é o tamanho do grupo abarcado pela categoria. A compreensão é o quanto a definição do grupo criado explica sobre os itens que estão nela contidos. À medida que você aumenta a extensão, fatalmente você diminui a compreensão. E vice-versa.
Quanto mais jogos você tentar abarcar numa categoria menos em comum eles terão. Mais difícil será obter uma definição precisa para o termo com o qual você intitulou o grupo.
Segue uma lição aqui: para que não tenhamos que trabalhar com uma quantidade gigantesca de categorias, precisamos aceitar que haverão itens que não ficarão bem colocados em lugar nenhum e acochambramentos serão feitos. Ou é isso ou teremos quase tantas categorias quanto jogos.
A Escola de Atenas – Ordem divina ou Construção humana?
A imagem acima é um recorte de uma das obras-primas de Rafael Sanzio (não o nosso colega do Covil, mas o seu homônimo pintor renascentista). Ao redor de diversos personagens da antiguidade, Platão e Aristóteles (que haviam sido respectivamente professor e discípulo antes de se tornarem rivais) discutem efusivamente sobre a verdade e o nosso conhecimento.
Platão afirma que a verdade está no “céu”, no mundo das ideias, onde os conceitos existem em suas formas perfeitas enquanto o que vemos aqui na terra são meras cópias mal-feitas, afetadas pelas intempéries sub-lunares.
Já Aristóteles retruca que a verdade está na Terra. As coisas que existem são as coisas reais. As ideias, isto é, os conceitos, são construções do intelecto humano, criadas por nós para dar sentido ao que vemos.
A genialidade de Rafael está em captar numa simples imagem o que talvez seja a principal discussão filosófica da humanidade, que perdura até hoje, repercutindo em temas tão variados como o gênero humano e as formas de governo.
Eu não vou entrar na roubada de tomar uma posição geral definitiva mas, no que tange os jogos de tabuleiro, sou decididamente aristotélico.
Não estamos lidando aqui com verdades absolutas e imutáveis e nem mesmo com coisas que se movem muito lentamente, como a seleção natural que ocorre na natureza (é por isso que o sistema de classificação de animais e plantas parece tão perfeito – nós não vivemos o suficiente para ver as espécies se modificarem). Jogos novos são lançados a cada dia e muitos deles desafiam as convenções atuais.
A conclusão desse pequeno aparte filosófico é que as categorias de jogos não são definições formalmente objetivas e imutáveis, mas abstrações criadas para resolver práticos da vida de quem lida com isso.
Análise Essencial
Um dos livros mais importantes que eu li na minha carreira de analista de sistemas foi “Análise Essencial de Sistemas”, de McMenamin e Palmer. Esse livro simplesmente explodiu minha cabeça! Foi como se eu tivesse chegado a Revelação.
A principal ideia do livro é que o modelo conceitual de um sistema deve ser livre de qualquer questão de implementação. Isso pode ser feito através de uma ferramenta de pensamento chamada “tecnologia perfeita”: pense que, para implementar o sistema, você não depende de nenhum compromisso físico criado pelo meio ou material que utiliza. Isso lhe permitirá separar as questões circunstanciais das questões acessórias.
Dando um exemplo bem simples: pegue um euro clássico qualquer, com seus indefectíveis meeples e cubos de madeira. Essas peças maravilhosas, que tanto amamos, são um requisito essencial ou circunstancial?
Digamos que você pretenda implementar o jogo em um meio digital. Ele deixará de ser o mesmo jogo por você não estar usando peças de madeira?
Aliás, ele deixará de ser um euro?
Nós vamos discutir isso mais a frente, mas na minha opinião ter peças de madeira são um requisito circunstancial. A essência de um jogo e até da família “Eurogame” não está nisso.
É com esse mecanismo que pretendo responder às questões colocadas no início do artigo.
Cada um no seu quadrado
A alocação de trabalhadores é um mecanismo relativamente recente. Segundo o ótimo artigo “Defining Worker Placement” (link nas referências), ele é derivado do mecanismo de “seleção de papéis” (em inglês, role selection) que é o mesmo mecanismo de Puerto Rico, onde a cada rodada um jogador escolhe um papel a desempenhar, dentre os que restaram.
A seleção de papéis, por sua vez, é derivado de um mecanismo ainda mais genérico, conhecido como “seleção de ações” (action selection) onde basicamente o jogador em seu turno escolhe uma das ações presentes no tabuleiro. Um exemplo moderno do uso de “action selection” é o Pipeline, onde os jogadores escolhem sua ação livremente dentre as opções dispostas no tabuleiro.
Como a maioria das pessoas, eu acreditava que o primeiro jogo de Alocação de Trabalhadores era o Caylus, lançado em 2005. Não é! O primeiro jogo a usar essa mecânica foi Keydom (1998).
Mas foi Caylus que realmente tornou a mecânica famosa. Depois dele vieram Agrícola e Stone Age e o resto é história. A alocação de trabalhadores é hoje a mecânica mais utilizada em jogos de estilo europeu. Ela se tornou tão onipresente e se criaram tantas variações sobre ela que parte dos jogadores passou a reconhecê-la até onde ela não está!
A novidade que a alocação de trabalhadores traz é estender a tensão de escolhas cada vez mais restritas por vários turnos e não apenas por uma rodada na mesa. Os jogadores recebem uma certa quantidade de trabalhadores e têm que gerenciar a sua alocação dentre as ações possíveis, sabendo que eles não voltam a sua mão facilmente. Em algum momento o jogo reseta o tabuleiro, seja pelo fim da “era”, ou por algum evento causado por você ou outro jogador, mas este custo de oportunidade tem que estar presente de alguma forma. Um meeple alocado é um meeple gasto.
Eu não pretendo descrever aqui todos os detalhes da mecânica (recomendo o texto das referências para quem quiser se aprofundar), mas sim dizer o que EU considero como essencial para um jogo ser considerado um jogo de “alocação de trabalhadores”.
- Disputa pela prioridade em executar ações que estão disponíveis a todos: o desafio eleger suas prioridades. Tão importante quanto a ação que você escolhe é a ação que você deixa para os adversários. O que é mais importante naquele momento?
- O trabalhador fica indisponível ou, pelo menos, haverá algum custo adicional relevante para utilizá-lo novamente.
- A ordem do jogador é extremamente relevante, a ponto de existir formas de alterá-la durante a partida (normalmente ao custo de um turno).
E o Teotihuacan?
Para começar, não há dúvida que existem trabalhadores no jogo! Eles estão na regra. A questão é se é ou não um jogo de “alocação”.
Os trabalhadores são dados que percorrem um rondel de oito ações. Cada jogador começa com 3 trabalhadores, podendo eventualmente receber um quarto. Na sua jogada, o jogador escolhe um dos trabalhadores e o movimenta até 3 espaços para um novo posto, tendo ali algumas opções a executar: a ação principal, que custa cacau, a ação de ganhar cacau e, eventualmente, a opção de orar no templo (essa ação prende o trabalhador até que um outro jogador queira entrar no mesmo lugar ou o próprio jogador resolve perder um turno completo ou gastar 3 cacaus para liberar os trabalhadores presos).
O melhor argumento daqueles que acham que Teotihuacan é um jogo de alocação de trabalhadores é a existência da ação de oração. Mas, além dela ser apenas um detalhe do jogo, não há nada que impeça o jogador de liberar seu trabalhador na rodada seguinte (além do custo da ação). O trabalhador nunca é “gasto” no sentido que ele se torna indisponível por algumas rodadas. Isso me faz entender que esse jogo não é um jogo de “alocação de trabalhadores”!
Mas o meu argumento principal é que o seu custo de oportunidade não vem da alocação do trabalhador em um posto e sim do fato que você deixa para atrás as ações que pula ou a ação que deixa de fazer para pegar cacau. Essa é uma característica dos jogos de rondel.
Você diria que Banco Imobiliário é um jogo de alocação de trabalhador (o seu peão que anda pelo tabuleiro e ainda GANHA UM SALÁRIO quando completa uma volta?) Repare que estamos falando exatamente da mesma mecânica (só que sem rolar dados).
Sendo assim, eu entendo que Teotihuacan é um jogo de “seleção de ações” e não de “alocação de trabalhadores”.
Sei que muita gente importante discordará dessa argumentação e não há grande problema nisso. É da natureza das classificações elas serem imperfeitas e um jogo continua sendo o mesmo, independente da forma que o rotulamos.
A lição que quero deixar aqui é tentarmos não ser aquele cara que, só porque tem um martelo na mão, acha que tudo é prego. Existem nomes mais adequados para algumas coisas.
Velho e Novo Mundo
Estados Unidos e Europa são sociedades ocidentais e por isso comungam de muitas semelhanças. Mas, na verdade, suas diferenças podem ser ainda mais gritantes.
As diferenças já existiam desde os tempos coloniais, mas elas de fato se tornam gigantescas a partir do século XX. A Europa foi destruída por duas guerras mundiais enquanto os Estados Unidos cresceram absurdamente no mesmo período (muito por ter sido o principal fornecedor – e credor – dos países beligerantes).
Enquanto os europeus se tornaram sobreviventes, com todo o seu modo de vida voltado para a eficiência e sustentabilidade (a grande maioria das pessoas que vivem nas cidades não tem carro), o american way of life virou sinônimo de fartura e de SUVs que bebem mais do que o João Canabrava.
Essa fartura e o dinamismo empresarial americanos criaram uma gigantesca indústria do entretenimento, que até hoje abastece não só o país, mas o mundo inteiro com filmes, séries e videogames (e, quem diria, board games).
A minha teoria é que as características dessas sociedades foram carregadas para os jogos autorais que elas produzem e que elas representam os pólos do eixo principal sobre o qual os jogos modernos são produzidos: controle e conflito.
Eurogames – Controlando a escassez
É comum dizermos que os euros são mais baseados nas mecânicas que nos temas, que eles usam peças de madeira, que eles costumam ser pouco atrativos visualmente, que eles normalmente propõem questões de gestão de recursos, que sua interação normalmente é indireta e que eles não costumam depender de sorte.
Com o tempo e com o maior intercâmbio entre os designers, algumas coisas vêm mudando. Até porque temos muitos americanos projetando jogos de estilo europeu. Então eles já não são tão feios, alguns deles usam Propriedade Intelectual vinda de outras mídias, etc. Alguns deles vem até ousando usar dados!
Isto é, vários requisitos circunstanciais vem caindo com o tempo (mas as peças de madeira continuam impávidas… retirá-las é quase um sacrilégio… ainda).
Reduzindo um jogo de euro típico a sua essência, o que ele apresenta ao jogador é uma charada: como eu vou usar os recursos que tenho para conseguir mais recursos e construir as coisas que preciso para ficar na frente dos meus adversários.
Os adversários estão lá, você precisa prestar atenção no que eles fazem, porque fatalmente vocês estão buscando as mesmas coisas, mas eles estão em segundo plano. O desafio é, quase sempre, vencer a escassez inicial e criar condições para atingir os desafios propostos.
Não é à toa que a origem dos eurogames é a Alemanha e muito menos a fome ser um elemento constante nesses jogos. ESSES CARAS VIVERAM O ARMAGEDDON DUAS VEZES EM MENOS 50 ANOS.
É natural que os jogos europeus não dependam de sorte? Que sorte? Por muito tempo, eles só viveram revezes. Acho que eles aprenderam a não contar com ela.
Ameritrashes – Drama e Conflito
Enquanto isso, no outro lado do Atlântico, patrocinada pelo welfare state advindo do New Deal, a indústria do cinema assumiu o carro-chefe da indústria do entretenimento.
Havendo tantos empregos para atores e roteiristas, não é de se estranhar que tenham surgido por volta dos anos 70 os role playing games (RPGs). O que eles são senão basicamente roteiros de filmes de aventuras a serem experimentados pelos jogadores que encarnam seus personagens?
A escola americana de jogos de tabuleiro está totalmente imersa nessa cultura. E, de forma pejorativa, foi apelidada (provavelmente pelos superiores jogadores de jogos europeus “sérios”) de “ameritrashes”.
Os ameritrashes são jogos que, acima de tudo, focam em trazer aos jogadores uma sensação imersiva. Eles costumam ter algum elemento narrativo forte, o foco da competição quase sempre está no conflito entre os jogadores e/ou contra personagens controlados pelo jogo, e no uso massivo de miniaturas que evoquem o tema o tanto quanto possível.
Quem estuda artes cênicas sabe que o motor do drama é o conflito. Num jogo da escola americana, o desafio dificilmente estará na obtenção de recursos, e sim nas forças e fraquezas dos adversários. Como eu me coloco em uma situação de vantagem sobre o oponente? O que ele vai fazer para contrapor isso?
Em jogos assim, existe risco dos jogadores se armarem até os dentes por muito tempo, para tentar garantir a vitória e o jogo se tornar interminável, porque todos estão tão poderosos que é praticamente impossível derrotá-los. Pense numa partida de War onde só restaram dois jogadores (ou pior, uma partida de Munchkin).
Por isso, esses jogos normalmente criam mecanismos que premiem jogadores que se arriscam a ataques em situações não tão vantajosas. Isso normalmente envolve sorte e faz todo o sentido porque além de evitar a “corrida armamentista”, o jogo fica mais emocionante.
Quantas vezes nos filmes o herói ganha o dia no que parece uma ação suicida, se jogando contra os adversários a despeito de todas as probabilidades e sai vitorioso?
Tertium non datur?
Traduzindo do Latim: É possível uma terceira via? Haverá uma síntese no horizonte?
Muita gente acha que sim, que o maior intercâmbio entre os designers fez com que as fronteiras caíssem e os jogos mais novos tenham se tornado exemplares híbridos, com elementos europeus e americanos ao mesmo tempo. O melhor exemplo disso seria o Scythe, que realmente possui um componente narrativo forte aliado a um jogo onde a gestão de recursos é mais importante do que o conflito.
Eu discordo. Ou melhor, eu reconheço que vários dos requisitos circunstanciais que atribuímos às duas escolas realmente caíram. Os europeus descobriram que fazer jogos bonitos não é pecado. Os americanos perceberam que dar alguma forma dos jogadores mitigar a sorte, ainda que parcialmente, torna os jogos um pouco mais interessantes. E todos aprenderam que colocar miniaturas ajuda a arrebanhar apoiadores para projetos de financiamento coletivo!
Mas eu defendo que diferenças essenciais se mantêm. Dou como exemplos dois jogos recentes: Barrage e Nemesis.
Ambos são belas produções. Ambos tem a jogabilidade bem elaborada. E ambos são, claramente, exemplares típicos de suas escolas.
Barrage é lindo, é temático, tem um alto nível de conflito no tabuleiro (indireto), mas ainda se trata de gerir a escassez. A água é escassa, tudo o que você faz abre possibilidades para os adversários e a gestão dos recursos é bastante rebuscada. Barrage é talvez o melhor Euro de 2019/2020.
Nêmesis é lindo, é temático, você precisa gerir recursos escassos, mas o principal é o conflito. Com os aliens e com os demais jogadores. Pouco adianta gerir os recursos com todo o cuidado para no final ser empurrado espaço afora pelo colega traidor. Nêmesis é talvez o melhor Ameritrash de 2019/2020.
Eu acho muito difícil encontrar um equilíbrio perfeito entre a gestão eficiente de recursos e o conflito. Você estará mais para um lado ou para o outro. Como na política atual, quem fica no meio apanha dos dois lados!
E o Scythe? Ok, ele tem um aspecto narrativo bem presente, mas não engana ninguém. É um baita de um euro. Existem situações onde é possível ganhar sem realizar nenhum combate. Além disso, alguém realmente se importa em ler o texto das cartas de eventos?
Euros e Ameritrashes continuarão com a gente por muito tempo. Cada vez mais parecidos como produtos, mas separados por um abismo de intenções em seus âmagos.
Referências
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
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