Episódio 1
O Xadrez está em alta. Uma conjunção astral de fatores fez com o que o Rei dos jogos voltasse ao mainstream com força!
Com a pandemia, muitas pessoas se voltaram para os lazeres indoor. Como a maioria não conhece os board games modernos, boa parte delas buscou nos jogos clássicos o passatempo necessário para esses tempos difíceis. E um dos maiores beneficiários dessa tendência foi aquele que há mais de 500 anos fascina algumas das mentes mais brilhantes do mundo sem nunca se esgotar: o Xadrez.
Se isso já não era pouca coisa, o lançamento da série “O Gambito da Rainha” pela Netflix arrebentou de vez a boca do balão. A série conta a história (fictícia) de uma jovem enxadrista, Beth Harmon, que descobre o jogo aos 8 anos ao ver o zelador do Orfanato onde mora estudando nas suas folgas. Ela o convence a ensiná-la e, até como uma fuga pelo ambiente opressivo em que vive, fica obcecada pelo jogo, tornando-se uma das maiores enxadristas de todos os tempos. Seu brilhantismo porém não resolve todos os seus problemas, que incluem uma mãe adotiva excessivamente permissiva, o vício em calmantes e álcool, além de um alto grau de misoginia.
A série é sensacional mesmo para quem não sabe diferenciar um peão de um bispo, mas a forma como o Xadrez é apresentado é a cereja do bolo. As partidas foram todas preparadas por jogadores famosos e incluem não só as posições chave para o momento dramático, mas todo o desenvolvimento de como se chegou até ali de forma bastante coerente.
A análise das partidas, realizadas por sites de xadrez como se elas fossem reais, dão contornos de realidade e agregam imenso valor a série.
Sendo assim, as plataformas virtuais de Xadrez vem apresentando um crescimento arrebatador. O CEO da Chess.com publicou um artigo onde ele demonstra o aumento vertiginoso de usuários e da carga de processamento recebida pelo site nos últimos meses. De 1,3 milhões de usuários (obtidos de 2007 para cá), em seis meses eles subiram para 3,1 milhões, e o ritmo atual chega a ser de 100.000 novos usuários por dia. A imagem abaixo aparece no artigo, demonstrando como o interesse aumentou desde março deste ano.
O objetivo dessa série de artigos é trazer um pouco da atenção dos meus companheiros de hobby para essa maravilhosa invenção da humanidade. Isso me parece importante, uma vez que noto que boa parte dos jogadores de board games modernos veem o Xadrez com certa reserva.
No momento em que escrevo (final de Novembro de 2020), o Xadrez ocupa a pouco auspiciosa 446a. posição do ranking da bgg (nós brasileiros o temos em melhor conta pois na Ludopedia ele aparece na 113a. posição).
Lendo os comentários das notas mais baixas, percebe-se um certo duplo padrão. O que para jogos com Projeto Gaia são qualidades (curva de aprendizado íngreme, total determinismo), para o Xadrez é defeito. “Só fica interessante se você encontrar alguém do seu nível”. Ora, eu posso falar isso de diversos jogos incensados pela intelligentsia do Board Game nacional!
Pois bem, essa série é a minha homenagem a esse jogo que ao mesmo tempo temo e respeito. Serão 7 artigos, a saber:
Neste primeiro, além desta introdução, falaremos sobre a história do Xadrez, de seus precursores até a alta Idade Média, quando o jogo tomou a forma que conhecemos até hoje.
No segundo artigo falaremos de alguns dos grandes jogadores da história e da contribuição que eles trouxeram para o jogo, com destaque para o Paul Morphy, Bobby Fischer, Karpov, Kasparov e finalmente, Magnus Carlsen.
O terceiro artigo dará uma lista dos principais termos usados em conversas sobre Xadrez, e algumas curiosidades sobre a notação e a titulação dos jogadores (qual a diferença entre um mestre e um grande mestre, por exemplo).
No quarto artigo falaremos sobre os engines, aproveitando para contar um pouco da história do confronto entre o Kasparov e o Deep Blue.
No quinto artigo, falaremos sobre os ritmos de jogo. Quais são os ritmos de tempo mais utilizados e no que isso interfere (eu adoraria que usássemos relógios em algumas partidas de jogos modernos).
No sexto artigo falaremos sobre algumas das principais plataformas de Xadrez online, seus principais serviços e preços.
No sétimo e último artigo recomendamos alguns produtores de conteúdo em língua portuguesa e comentaremos um pouco de suas peculiaridades.
A série será publicada ao longo dos próximos meses, pois os artigos demandam certa pesquisa. Eles serão intercalados por textos sobre outros jogos (o próximo será o Teotihuacan, a princípio).
Nosso hobby precisa de novos jogadores e os enxadristas são potenciais board gamers. O Xadrez possui uma comunidade pelo menos 10 vezes maior que a nossa.
Por que não tentarmos aproximar esses mundos? Por definição, todo enxadrista já é um jogador de jogos de tabuleiro. Eles poderiam se tornar um manancial inesgotável de novos jogadores, se soubéssemos nos aproximar deles.
E somos nós que temos que dar o primeiro passo, pois precisamos deles muito mais que eles de nós. Que tal começar conhecendo um pouco do jogo que eles tanto gostam?
História do Xadrez – Uma vitória do design evolutivo
Um dos principais conceitos na arte ocidental é a importância que damos a autoria. Nós vemos os artistas, sejam eles pintores, compositores, escultores (e designers de Board Games) como pessoas diferenciadas que utilizam sua obra para expressar algo ao mundo.
O hobby de board games modernos é muito fruto desse conceito: praticamente 100% dos jogos modernos são jogos autorais. Nós cultuamos designers como melômanos cultuam compositores.
É verdade que temos centenas de jogos excelentes feitos por designers. Mas isso não quer dizer que essa seja a única forma de se criar jogos. Praticamente todos os jogos clássicos são de autoria desconhecida. Não só porque eles são muito antigos, mas também porque eles são fruto de inúmeras mutações que sofreram ao longo tempo.
Xadrez, Mancala, Gamão, Damas, Trilha, todos eles são construções humanas refinadas através dos tempos, à medida que esses jogos foram sendo assimilados e reformados pelas sociedades onde passaram, num processo muito parecido com a evolução natural de Darwin.
Era uma vez na Índia
Nossa história começa em pleno Império Gupta, na Índia do século VI. Embora os Guptas tenham dominado praticamente todo o subcontinente, eles foram responsáveis por uma das maiores eras de ouro já vividas por uma sociedade humana, com imensas contribuições à arte e a ciência (a maior delas talvez seja o conceito do número zero, até então desconhecido). O Xadrez foi apenas uma delas.
Partindo do tabuleiro de um jogo chamado Ashtapadi, onde os jogadores jogavam dados e moviam suas peças por um tabuleiro de 64 quadrados organizados em 8 linhas e 8 colunas numa espécie de corrida, surgiu um jogo chamado Chaturanga.
O Chaturanga era wargame onde 4 exércitos de oito peças se digladiavam simultaneamente. Cada exército era formado pelas mesmas unidades que compunham o exército Gupta: infantaria, cavalaria, elefantes e barcos além, é claro, do Rajah, o comandante.
Dessas peças, herdamos os peões, os cavalos, as torres e o Rei, com os mesmos movimentos usamos hoje. Apenas os navios eram bem diferentes. Eles se moviam dois quadrados na diagonal e podiam saltar peças, como os cavalos.
As semelhanças param por aí. Sendo um jogo de 4 pessoas de intenso conflito, era absolutamente necessário fazer alianças para poder sobreviver e atacar os adversários sem ficar exposto a um contra-ataque. O jogo era uma espécie de precursor do Rising Sun. Além disso, o jogo dependia da sorte! O objeto que está à direita do tabuleiro é uma espécie de dado, e ele definia que peça deveria ser mexida (e também para definir o valor das apostas).
Algumas questões sociais também se refletiam no jogo. Dado o sistema de castas indiano, o jogo possuía restrições sobre a captura de peças: os peões não podiam capturar as peças superiores e o Rajah não deveria ser morto, apenas capturado (e eventualmente, poderia ser resgatado numa troca de reféns).
O fato do jogo ser um jogo de azar era visto como um problema para o Hinduísmo e mais ainda para o Budismo. Foi a pressão religiosa que fez o jogo abandonar o dado e as apostas e se tornar um jogo determinístico.
Esse processo de metamorfose continuou ao longos anos. A principal mudança é que o jogo se tornou um jogo de 2 pessoas, com a fusão dos exércitos. Isso explica porque as peças são rebatidas simetricamente e porque um dos Rajahs teve que ser transformar numa nova peça (um ministro, que se mexia apenas da diagonal, um quadrado por vez). E como não faria mais sentido a troca de reféns num jogo de 2 pessoas, aprisionar o Rei tornou-se o objetivo principal do jogo.
Chaturanga caiu no gosto dos mercadores da Rota da Seda e isso permitiu que ele chegasse em outros lugares. Nossa história então continua na Pérsia (hoje também conhecida como Irã), onde o Chaturanga se tornaria Shatrang e ficaria muito próximo do jogo que conhecemos hoje.
As Contribuição Persa e Árabe
Chaturanga chegou na Pérsia antes mesmo do Islamismo. Quando o jogo foi trazido por mercadores, a região fazia parte do Império Sassânida.
Os Persas ficaram loucos pelo jogo e, como de hábito, o adaptaram para a sua realidade. O Rajah virou Shah, o ministro virou Farzin (o guarda-costas do Shah) o setup do jogo se tornou fixo, o ataque ao Shah deveria ser anunciado (isso até perdura até hoje com o procedimento de “xeque” e fim do jogo deveria ser decretado com a frase “shat mat” – o rei foi derrotado, em persa.
Como a Pérsia não era conhecida por sua marinha, os navios foram substituídos por rokhs, cujo significado seriam “carruagens de guerra”.
No início do Século VII, enquanto os Sassânidas entraram numa renhida disputa dinástica de poder, os seguidores de uma nova religião se preparavam para invadir a Pérsia. Após conquistar a Arábia, os mulçumanos chegaram a Pérsia em 636 e se aproveitaram da confusão da corte Sassânida para, em apenas 14 anos, tomar todo o território do antigo império.
E assim o Xadrez se espalhou por todo mundo islâmico. Logo se tornou o jogo favorito dos Califas e Intelectuais, mas num império teocrático, a pergunta que ficava era: o que Alah acha desse jogo?
O Alcorão proíbe o jogo a dinheiro, mas o Shatrang não era um jogo de apostas. Ou, pelo menos não em princípio, já que muitos apostavam. Alguns achavam que o jogo era tão imersivo que levava as pessoas a negligenciar as obrigações religiosas.
Outra questão importante eram as peças: até então, as peças eram reproduções realistas das unidades que elas representavam. Eram o que chamamos de miniaturas hoje (não foram encontradas evidências de financiamento coletivo para tabuleiros de Xadrez na Arábia). Mas o Alcorão não permitia a representação de humanos e animais.
O jogo logo teria sido banido se não tivesse defensores poderosos. Formou-se um impasse, que acabou resolvido da seguinte forma: o jogo poderia ser jogado de forma privada, sem apostas e as peças deveriam ser abstratas, tal como toda arte islâmica.
Não pense que os Muezins e Aiatolás ficaram satisfeitos. O Islã vive às turras com o Xadrez até hoje. O Xadrez foi proibido após a revolução Iraniana em 1979, só voltando 1988. Quando o Talibã tomou o Afeganistão eles não só proibiram o jogo como prendiam qualquer um que fosse pego jogando-o. E na Arábia Saudita, quando um grande religioso de lá foi perguntado sobre o que achava do Xadrez, ele o declarou proibido.
Mas, com tudo isso, foi através dos Árabes que o Xadrez chegou à Europa em 711, quando os mulçumanos invadiram as Espanha e formaram o Emirado de Al-Andalus.
Se os árabes trouxeram turbulência a Europa, sua longa estada na Ibéria também permitiu um período de intercâmbio cultural. Seus intelectuais haviam traduzido muito de toda filosofia grega, que fora perdida na Europa após o incêndio da Biblioteca de Alexandria.
O jogo da Rainha Louca
Como de hábito com todos os povos que citamos nesse artigo, os Europeus tambem ficaram fascinados pelo jogo, que rapidamente se espalhou por todo o continente. No século X já era jogado na Bavária e antes do fim do século XII já tinha alcançado a Escandinávia e até mesmo a remota Ilha de Lewis, na costa da Escócia.
O Xadrez era jogado sobretudo pela nobreza. Os Pajens que aspiravam a ser Cavaleiros deviam aprender o jogo e Mestres eram tidos em alta conta nas cortes como artistas, assim como Bufões e Músicos.
O Xadrez era também “o jogo do Amor”, pois uma das poucas razões socialmente aceitáveis para que uma dama recebesse um cavaleiro a sós em seus aposentos era se eles fossem jogar Xadrez. Isso se reflete na história de Tristão e Isolda, que se apaixonaram enquanto jogavam.
Ao contrários dos religiosos islâmicos, a Igreja Católica via o Xadrez como algo divino. Em um tratado sobre a moral, atribuído ao Papa Inocêncio III, lê-se que “a condição do Xadrez é que uma peça captura a outra e, no fim do jogo, todas as peças se tornam iguais e voltam para a mesma caixa”.
Embora fossem unidos no amor ao Xadrez, os europeus não conseguiam chegar a um acordo em como jogá-lo! Cada país tinha seu próprio conjunto de “house rules”. Na alemanha, os peões podiam andar duas casas no primeiro movimento, ao invés de apenas uma. Na Itália, o Rei podia passar por cima de outras peças no seu primeiro movimento (uma regra que claramente precedeu ao atual roque).
E cada país dava nomes diferentes as peças: o que hoje é o bispo (nome que os ingleses deram), para a frança era le fou (o bufão) e para os alemães, o mensageiro. Para os sofisticados Italianos, era o porta-estandarte!
Mas, chegando ao ano 1400, os europeus começaram a achar o jogo um pouco tedioso. As peças se moviam muito devagar. O jogo demorava lances e mais lances para chegar numa posição interessante. Algo tinha que ser feito.
Fizeram de tudo. Na Espanha chegaram até a reintroduzir os dados para decidir movimentos (claro, sem saber que eles existiram na origem do jogo)!
O que funcionou mesmo foi aumentar o poder das peças. O Bispo/Bufão/Mensageiro passou a controlar as diagonais inteiras (sem mais poder pular peças). O movimento inicial do peão alemão foi largamente adotado, assim como a captura en passant (explicarei o que é isso no terceiro capítulo).
Porém, a mudança que realmente salvou o jogo foi tornar a Dama a peça mais poderosa do jogo.
Quando o muçulmanos trouxeram o Xadrez para a Espanha, o ex-ministro e guarda-costas já tinha se tornado o Vizir, com o mesmo movimento chocho de uma casa em diagonal. Rapidamente a peça foi localizada e virou a Rainha, mas ainda com os mesmo fracos poderes.
Entre os séculos XV e XVI, talvez inspirados por diversas rainhas que tiveram real poder político nas cortes europeias, como Isabel de Castilla, Caterina Sforza e Elizabeth I, a Dama ganhou poderes, acumulando simultaneamente o movimento das torres (as antigas carruagens) e dos bispos.
Isso tornou o jogo muito mais ágil, permitindo posições muito mais dinâmicas, com muitos golpes táticos, totalmente diferente do jogo que foi inventado quase mil anos antes na Índia.
Essa variante foi logo apelidada pelos Italianos de “O Xadrez da Rainha Louca”.
Em pouco tempo, as pessoas esqueceram as regras antigas e essa se tornou a forma dominante do Xadrez que conhecemos hoje, apesar das regras só terem sido realmente padronizadas no século XIX, que é onde daremos continuidade à nossa história no próximo episódio!
Referências
Devo muito do que escrevi nesse artigo ao livro “It’s all a Game”, de Tristan Donovan. A história que conto aqui é basicamente a história que o livro conta, com alguns detalhes e fotos que retirei de outras fontes. Os eventuais erros são de minha responsabilidade, é lógico.
Recomendo muito a leitura desse livro, que faz um sobrevoo pela história dos jogos de tabuleiro em geral, além de fazer algumas discussões sobre o caminho que os jogos modernos tomaram. Considero uma leitura imperdível para quem gosta do assunto.
Além desse livro, como de hábito cito algumas fontes que utilizei, para quem quiser se aprofundar mais.
https://www.goodreads.com/book/show/31451009-it-s-all-a-game
https://www.chess.com/pt/article/view/os-10-mais-importantes-momentos-na-historia-do-xadrez
https://www.chess.com/blog/erik/incredible-second-wave-of-interest-in-chess
https://screenrant.com/queens-gambit-real-life-best-female-chess-players/
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Magnífica iniciativa! Muito bem vinda.
Sem dúvida a aversão que a maioria dos board gamers tem pelo xadrez é muito injusta. Já que este jogo é incomparável em sua elegância. Apenas superado pelo Go. Por meio de muito poucas regras, todas bem naturais, se alcança uma profundidade estratégica inacreditável. Bem diferente dos jogos modernos “pesadões”, tão incensados pela comunidade, com suas toneladas de regras e manuais imensos.
Toda a complexidade do xadrez está no jogo em si, e não em suas regras. Que são bem simples. O jogo apresenta um “rendimento” ou eficiência, em termos de quantidade de regras/resultados obtidos, que jogo moderno nenhum é capaz de chegar perto.
Só uma observação. O jogo indiano para quatro jogadores se chamava Chaturaji. Chaturanga é o nome da versão para dois jogadores.
Hudson,
Obrigado pela informação e pelo feedback! Acabei não vendo esse comentário na época.
Ótimo artigo, Eduardo. Chegu4i aqui por causa do artigo dos Jogos Abstratos (na Ludopedia), excelente. Quanto à bibliografia , o Tristan Donovan tem 2 livros, qual deles você usou?
Roberto,
Obrigado pelo comentário! O nome do Livro é “It’s all a game”. Não sabia que ele tinha outro livro lançado, vou procurar.
Sds,
Eduardo