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Introdução
Ferrovias são um dos temas mais recorrentes nos jogos de tabuleiro. De Ticket to Ride aos 18XX, eles estão em praticamente todos os nichos do hobby. O assunto pode ser, ao mesmo tempo, inesgotável (para os fãs) e repetitivo (para os detratores) mas a sua onipresença é um fato que não pode ser contestado.
Além do contexto histórico, de serem praticamente o símbolo de revolução industrial, a gestão de ferrovias é uma atividade que ajudou muito a desenvolver a ciência da administração e a pesquisa operacional. Seus altos custos fixos e a enorme competitividade que existia entre as empresas foi um grande incentivo para a buscas de ganhos marginais na eficiência. Além disso, é inegável o fascínio que os comboios geram nas crianças de 8 a 80 anos.
Russian Railroads é um exemplar um tanto quanto diferentão nesse nicho. O tema é tratado de forma totalmente abstrata. Não há vagões, não há passageiros, nem entregas. O mapa na verdade é pouco mais do que aqueles roteiros verticais do Guia 4 Rodas (ainda existe isso?), existindo em paralelo no tabuleiros do jogador.
O que está em jogo é a construção e a evolução das ferrovias russas no final do século XIX, quando o grande império do leste, mal saído do feudalismo, estava desesperado por se modernizar.
Russian Railroads (RRR) é um jogo de alocação de trabalhadores bem tradicional. Você aloca seus trabalhadores num lugar e resolve a ação. O que o faz se destacar na multidão é a forma como o custo de oportunidade se faz presente, a variação estratégica permitida pela combinação dos bônus e, principalmente, o esquema de pontuação “bola de neve” que parece uma locomotiva ganhando força aos poucos para se tornar imparável no final.
Além de discutir os principais elementos do jogo e seus princípios táticos e estratégicos, vamos usá-lo para discutir um tópico mais geral, que é o quanto os jogos de tabuleiro modernos são “scriptados” e como nós jogadores nos apressamos em julga-los com poucas partidas.
Como sempre nessa série de artigos, eu joguei o suficiente para formar minhas próprias ideias, mas consulto também as principais fontes disponíveis de modo a evitar que algum elemento muito importante fique de fora.
Pelo que vi na Ludopedia, esse é o primeiro texto em portugues que vai além de um review ou de resolução de dúvidas. Espero estar contribuindo para que mais gente se apaixone por esse jogo sensacional!
Visão Geral
Foge ao escopo deste artigo explicar todas as regras e ainda dar as considerações táticas. Caso você não conheça o jogo, eu sugiro que vocês leiam as regras, vejam o gameplay do Covil e joguem algumas partidas no BGA. Se você não fez nada disso, é provável que esse texto pareça sânscrito para você.
Existem basicamente dois recursos: os trabalhadores e as moedas. São eles que permitem que as ações sejam executadas. As duas diferenças básicas são que as moedas podem ser economizadas para turnos posteriores e duas ações que só podem ser feitas com moedas (a compra do engenheiro e a ação de avançar dois trilhos quaisquer).
Normalmente as primeiras ações do jogo são dominadas pela aquisição de moedas, de engenheiros ou dos trabalhadores contratados. Todos essas ações ou estendem seu turno ou lhe garantem ações que poderão ser realizadas sem custo de oportunidade (isto é, sem ser tomada por um adversário).
A sequência dos engenheiros é um fator determinante para a escolha da estratégia do jogo. Como eles são sorteados no início do jogo e todos sabem a ordem em que serão oferecidos, é importante se planejar para comprar aqueles que lhe ajudarão na sua estratégia. Isso é mais importante do que competir pelo prêmio de 40 pontos.
Mas essa preponderância não quer dizer que você deve fazer uma dessas 3 ações automaticamente. Às vezes será importante buscar outras coisas, como avançar no trilho preto 2 ou 3 movimentos ou pegar uma locomotiva ou fábrica essencial. Decidir bem essas escolhas é o principal desse jogo.
Estratégia: Early vs. Long Game
A estratégia basicamente se resume a escolher que rotas você irá priorizar no jogo. Para isso, é preciso entender quais as funções que cada uma tem no engine building e na pontuação.
A transiberiana se presta a liberar os trilhos de cores diferentes (que pontuam melhor de acordo com o seu avanço), Saint Petersburg libera dois dos 4 bônus do jogo e Kiev permite um aumento de pontuação mais agressivo no início do jogo (é a única que dá pontos pelo avanço do trilho preto).
Já a indústria permite tanto um ganho relativamente rápido de pontos, como a liberação de benefícios que aceleram o desenvolvimento do jogo ou da pontuação, de acordo com as fábricas colocadas. Nas referências eu coloquei um texto que analisa as fábricas e locomotivas, para saber em detalhe quais se adequam a sua estratégia.
O jogo possui a ideia do cobertor curto. Você não vai fazer tudo. Não só porque não há ações suficientes, mas também porque os adversários vão buscar as coisas que você não priorizou.
A estratégia mais comum é combinar uma das trilhas que dão pontos no início do jogo (normalmente Kiev) com algo que lhe permita avançar paulatinamente na transiberiana que, se avançada corretamente, se torna uma bola de neve de pontos nas últimas rodadas.
E as engrenagens do motor que você precisa montar normalmente estarão na rota de São Petersburgo e na trilha da indústria.
Locomotivas e Fábricas:
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A decisão de quando pegar as locomotivas ou fábricas também é crucial. Na estratégia mais comum, as locomotivas 4, 5, 6 e 9 são altamente disputadas. A 4 e a 6 liberam os bônus de Saint Petersburg, a 5 permite a ativação da medalha de Kiev (um dos bônus mais poderosos do jogo) e a nove, principalmente aquela que pode ser obtida no início do jogo com o bônus, permite uma pontuação em Kiev ou na Transiberiana muito mais cedo do que normalmente é possível.
Já as fábricas, normalmente as de número 3, 5, 6 e 9 são as mais disputadas, pois elas permitem respectivamente a replicação de uma ação, um avanço grátis na indústria, uma moeda e a aquisição de mais um objetivo de fim de jogo.
Os demais números, tanto de locomotiva como o de fábrica, tem uso em situações mais específicas. Se você vai forte na transiberiana, talvez a fábrica 4 (que lhe dá dobradores) poderá ser de grande ajuda (principalmente se você pegar o objetivo de fim de jogo que premia pelos dobradores). Mas se seu jogo está focado em Kiev e São Petersburgo, não vai te servir em nada.
Uso dos Bônus
O jogo possui quatro oportunidades de bônus: duas em São Petersburgo, uma na indústria e uma na transiberiana.
As mais fáceis de liberar são as de São Petersburgo. A da indústria também não é muito difícil, mas se você anda muito rápido nela, precisa se preocupar em colocar o segundo pino para não ficar sem a opção de usar as fábricas mais poderosas no final do jogo (aquelas que dão pontuação). O bônus da Transiberiana normalmente só será obtido na penúltima ou na última rodada.
Se você pretende jogar pesado em Kiev no início do jogo, é importante correr para pegar a locomotiva 9. Isso pode ser decisivo, pois você pode colocar em seguida a medalha de Kiev e pontuar 20 ou 30 a pontos a mais que os adversário com uma rodada de antecedência.
Agora, se você quer andar na transiberiana, o trabalhador preto ou o engenheiro de dois movimentos podem ser muito mais úteis. Liberar os trilhos avançados cedo é muito importante para pontuar na transiberiana. Você passa a ter as ações de avançar esses trilhos antes dos seus adversários (diminuindo o seu custo de oportunidade). Aumentar a pontuação dos trilhos é um bônus muito bom para seu terceiro bônus, se você vai fazer essa estratégia. Ah, e não esqueça dos dobradores! Eles fazem muita diferença, principalmente com os trilhos bege e branco em jogo.
Se a competição pelos dobradores estiver pesada, lembre-se que existe a alternativa de dobrar os pontos em Saint Petersburg se o trilho cinza chegar a posição sete com a locomotiva. Tente não dividir esforços entre essas duras rotas. Se você decidir dobrar Saint Pete, ande apenas com o trilho preto na transiberiana. No máximo, ande com o marrom para pegar o trabalhador extra. E nada de perder tempo com dobradores!
Os outros bônus são de uso mais pontual. Andar 4 trilhos ou 5 na indústria podem lhe dar um boost quando se está muito atrás. Mas eles devem ser usados em conjunto com os demais.
Tática: quando a ordem dos fatores altera o produto
“Quando Deus fecha uma porta, ele abre uma janela” dizia a Madre Superiora em “A Noviça Rebelde”. Quanto a Deus, eu não sei, mas em RRR isso é muito verdade.
Russian Railroads tem um caminho que é aparentemente melhor que os outros. O erro dos jogadores é achar que ele pode ser seguido por todos. É essa falta de variação estratégica (dos jogadores e não do jogo) é que faz muita gente achar o jogo scriptado. O que ele não é.
Se alguém claramente está a frente em Kiev, você dificilmente se dará bem trilhando exatamente o mesmo caminho. O adversário vai sempre estar à sua frente e vai pontuar mais do que você.
Nesse jogo, toda ação cria um certo comprometimento com um caminho, deixando outros caminhos abertos para os adversários. Ganha quem perceber qual o caminho mais vantajoso possível para sua posição inicial e como aproveitá-lo.
Se, por exemplo, um jogador avança muito em Kiev, ele pode ser relativamente contido postergando o avanço das locomotivas. Tire as ações de um trabalhador do tabuleiro, deixe ele ter que gastar mais nas outras ações. Tente ler o que ele iria fazer em seguida e bloqueie essa ação. Mas não faça isso de maneira puramente defensiva, crie um caminho que faça sua sequência de ações renderem em cadeia para você.
Busque liberar os trabalhadores extras. Existe um em Kiev e outro na transiberiana.
Se um jogador avança muito na indústria usando as fábricas de força menor, forçosamente ele estará abrindo as de valor maior para os adversários. E as fábricas de valor 1 (essa é liberada quando você evolui a transiberiana) 8 e 9 permitem o ganho de muitos pontos extra, compensando muitas vezes o ganho com os bônus de engenheiro e objetivos.
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As ações comuns mais eficientes do jogo são as que permitem andar dois trilhos com um trabalhador. Basicamente elas economizam um trabalhador inteiro.
Por fim, vamos falar da ordem de turno. Ela é importante? Sim, muito… Mas você não deve priorizar jogar em primeiro ou segundo o tempo todo. Escolha os turnos onde isso vai ser importante. Normalmente você o faz para pegar o engenheiro que te interessa, ou para ter moedas. Se você tiver como repetir ação (seja pelo engenheiro que permite isso ou pela fábrica 3), um combo comum é pegar moeda duas vezes.
Às vezes é importante ir para segundo e não para primeiro, caso o engenheiro da rodada depois desta ser extremamente essencial. Como o primeiro não pode jogar para continuar primeiro, o segundo jogador terá a preferência para buscar essa ação.
Para vocês terem uma ideia de como a ordem de turno é importante, mas não primordial, um colega aqui do Covil jogou uma partida 1×1 na arena do BGA contra um cara muito bem ranqueado (top10) onde ele jogou em segundo em todas as rodadas e venceu.
O lance desse jogo é não se desesperar. Lembre-se que você sempre tem a ação comum (andar um preto ou cinza) e que você não precisa correr para ela.
Afinal, RRR é scriptado?
Como eu disse no tópico anterior, muita gente considera RRR um jogo scriptado:
- É só comprar os engenheiros!
- É só pegar a locomotiva 9.
- Quem sai em primeiro tem a vitória na mão.
Se você pensa isso, me desculpe, você não entendeu esse jogo.
Não leve a mal. É verdade que ele tem um caminho principal. Que algumas ações são bem melhores do que as outras. E que se você seguir o líder, não terá como ultrapassá-lo.
Mas isso não quer dizer que você possa aprender uma receita o jogá-lo no “piloto automático”. Se fizer isso, talvez ganhe de iniciantes, mas vai penar com jogadores fortes.
Esse jogo é de leitura do tabuleiro. Como toda ação só pode ser feita se puder ser executada totalmente, seus adversários não terão uma escolha livre de ações, permitindo que você se planeje corretamente. Essa é a chave para resolver o dilema do custo de oportunidade nesse jogo.
Muitos jogadores tendem a dar vaticínios definitivos sobre os jogos após pouquíssimas partidas. Desconfie.
A maioria das pessoas não varia a estratégia, simplesmente acha um caminho e fica repetindo-o sempre. Elas só não entendem o que acontece quando os adversários começam a bloquea-lo e ele se vê sem alternativa. O jogador reconhece seu erro? Quase nunca, é mais fácil colocar a culpa no designer.
O lado negro do nosso hobby é que, com tanta variedade, a maioria dos jogos não é explorada o suficiente. Sempre há algo novo para estrear, e o super lançamento imperdível do mês passado rapidamente jaz na estante para ser vendido no próximo leilão.
Os designer sabem disso e, na sua maioria, fazem jogos que entregam tudo nas primeiras partidas. Não vamos nos enganar, a maioria dos jogos comerciais é projetada para brilhar por 3 ou 4 partidas e cair no esquecimento. E nós nos acostumamos com esse ciclo rápido.
Mas alguns jogos são diamantes brutos e demoram, 20, 30, 100 partidas para entregar tudo o que podem. RRR é um desses. Explore suas possibilidades. Vai demorar a pegar o timing, mas ele te recompensar. Mesmo sem vencer, fazer 400 pontos (ou próximo disso) é altamente recompensador.
Considerações finais
O jogo varia bem com o número de jogadores. O jogo 1×1 é muito marcado, mas é relativamente mais fácil prever jogadas com antecedência. Já no jogo de 4, os engenheiros são de vital importância, pois são ações garantidas que você terá.
O jogo de 3 é um pouco mais solto que os demais, pois tanto as ações que dão recursos como a da locomotiva vem em grupos de 3. Normalmente você pode esperar uma rodada para executá-las.
É uma pena que ele não seja lançado no Brasil. Rola a lenda que a Devir vai lançar uma big box dele na Espanha. Seria lindo se eles se animarem (caso possam) a mandar para cá.
Mas, se a vida não é perfeita, pelo menos existe o BGA, onde o RRR rola solto. Jogá-lo diversas vezes foi uma das melhores coisas que fiz nessa pandemia. Ensinei o jogo para meu grupo virtual (todos apoiadores do Covil) e hoje eles fazem misérias na arena.
Nem sempre os melhores professores são os melhores jogadores!
Referências
Early thoughts on strategy (I), R.O. Schaefer – https://boardgamegeek.com/thread/1211892/early-thoughts-strategy-i
Locomotive Theory , Colin Sham – https://boardgamegeek.com/thread/1212331/locomotive-theory
Bonus Comparison, Philip Thomas – https://boardgamegeek.com/thread/1064748/bonus-comparison
Can you win without engineers? thread iniciado por Pedro Parente – https://boardgamegeek.com/thread/1390492/can-you-win-without-engineers
9 Locomotive is too strong and needs some kind of “nerfing”, thread iniciado por bestia immonda – https://boardgamegeek.com/thread/1166519/9-locomotive-too-strong-and-needs-some-kind-nerfin
![](https://covildosjogos.com.br/wp-content/uploads/2020/05/Eduardo-vieira-foto.png)
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Legal a análise, parabéns!!
Russian Railroads é um dos melhores jogos com essa temática!
Obrigado, Paulo!!
Parabéns pela análise e qualidade do texto! RRR é um jogo que me surpreende a cada partida. A leitura de mesa é incrível, tentar prever as jogadas dos adversários é complexo, mas possibilita uma rejogabilidade altíssima para o jogo.
Vítor,
Qusera eu saber jogar como você! É melhor eu ficar nos textos mesmo!
Sds,
Eduardo