Estamos a um dia da Spiel Digital, a versão digital da feira anual International Spieltage, que acontece em Essen, na Alemanha, todos os anos. A esta altura do campeonato é bem óbvio que o evento presencial não ocorrerá em função do Coronavírus, mas isso vocês já sabem.
No entanto, com a Spiel Digital surgiram, através do grande trabalho da Ludifique (www.ludifique.com.br), várias oportunidades para os brasileiros:
- Podemos participar da feira como espectadores de forma gratuita
- Teremos conteúdos em português e contaremos com a participação de editoras brasileiras na feira
- Alguns designers brasileiros terão a oportunidade de mostrar seus projetos e jogos na feira
Tudo isso é um grande avanço para nós e um grande reconhecimento por parte da feira de que nosso mercado merece ao menos um pouco de atenção.
Mas o que eu realmente queria focar neste texto é essa última oportunidade que citei: designers brasileiros poderão mostrar seus jogos e projetos na feira, tanto para o público final, quanto para editoras.
Eu venho trabalhando com jogos de tabuleiro desde 2015. De lá pra cá, foram alguns jogos publicados e inúmeros não publicados. Participei ativamente de alguns projetos de outros designers e editoras e vi processos diferentes para cada um deles.
Além disso, eu venho da área de design de produto. Depois de abandonar a faculdade, descobri que a minha verdadeira paixão na vida profissional é trabalhar produto e inovação. É disso que eu gosto e isso que quero para a minha vida.
Por essas razões e, vendo o trabalho dos brasileiros sendo exposto mundialmente, eu percebi que os jogos brasileiros sofrem muito ainda com um desvio de percepção de quem trabalha criando e fazendo jogos. Para esses que são meus colegas de ofício, eu gostaria de dar uma única dica que eu sinto ser importante: O SEU JOGO NÃO É PRA VOCÊ!
O pecado capital dos produtos brasileiros
É uma frequente: produtos brasileiros performam pior que produtos gringos. A gente não entende bem porque, não tem tantos dados para guiar nosso entendimento e nossas escolhas, mas podemos observar os produtos e tentar, a partir dessa observação, entender o que realmente acontece com os jogos nacionais.
Nessas observações durante os 5 anos dedicados a isso e em meio a muito estudo de design e criação de valor, eu percebi que a grande maioria dos jogos brasileiros falha no mesmo ponto: o processo de design não é centrado no usuário e, muitas vezes, é centrado no próprio designer.
Como é muito natural de um mercado tão inicial e aberto, pessoas criam jogos porque se empolgam e querem ir além em seus próprios hobbies. Essas pessoas, aspirantes a game designers, costumam criar jogos por sentirem falta de uma experiência específica, que elas gostariam de viver jogando.
Essa motivação tem um preço que costuma ser caro demais para o projeto em si: o jogo não é pensado como produto, ou seja, para compra e uso de outras pessoas. Isso significa que pequenas decisões são tomadas sem uma orientação clara, o usuário, o que sempre acaba influenciando a aceitação e a performance do produto final.
Pequenas decisões, aqui e ali, costumam ser o suficiente para, em conjunto, minarem o produto final e torná-lo menos do que poderia ser.
Isso também resulta em uma coisa, a hipervalorização do balanceamento e da matemática por trás do jogo. Para o usuário, o jogador, qualquer jogo cumpre uma função principal na vida dele: divertir. É muito simples entender isso mas, incrivelmente, é fácil perder o fio da meada num processo de design.
E sim, eu sei que a matemática e o balanceamento são importantes para que a diversão seja ampliada, eu sei disso. No entanto, ainda que sejam importantes, a parte mais importante de um jogo é que ele divirta. Os game designers, muitas vezes insatisfeitos com estatísticas, falta de controle em determinadas decisões e jogadas, se apegam demais à essas questões e criam sistemas etéreos, sem falhas estatísticas, sem erros matemáticos.
Só que você sabe o que um sistema em perfeito equilíbrio gera na mesa? Tédio. Sim. Quando todas as opções são perfeitamente balanceadas, os pontos são muito próximos, as possibilidades muito iguais, o desenrolar do jogo é muito igual. É tudo a mesma coisa. A emoção da decisão, a sensação de conquista e realização… muitas vezes essas se perdem na jornada do designer de tornar algo mais equilibrado, mais perfeito.
Existe um ponto ótimo que o designer deveria parar e ele não necessariamente para: quando o jogo diverte e ainda é um sistema balanceado. O foco de um desenvolvimento deveria sempre ser as emoções que o jogo proporciona. Se o jogo tem uma função na vida do usuário, o importante é ele cumprir essa função, não ser um sistema perfeito e casto.
Um exemplo nacional do que, hoje, eu acredito ser o melhor jogo brasileiro disponível no mercado é o Gnomopolis. No Gnomopolis, durante toda a partida, seu foco é em melhorar sua caneca de duendes e fazer sua máquina girar melhor. Como um grande deck/pool building, ele executa isso com perfeição e dá uma sensação de quero mais em apenas 30 minutos de partida. Ou será que não é bem assim?
Gnomopolis tem tudo. É bonito, é simples, é rápido, tem a sensação clara de o jogador estar avançando e melhorando sua engine… mas ele tem um fim de partida um pouco decepcionante. Pra quem já jogou o excelente Res Arcana, do Tom Lehmann, sabe qual é a sensação ao final de uma partida: quero jogar outra AGORA!
Já no Gnomopolis, a pontuação de fim de jogo quebra muito a lógica da partida, da otimização constante. Como você pontua por conjunto de Gnomos de acordo com as construções que você tem, você deve se preocupar muito em QUAIS gnomos pegar, mas não pela necessidade de melhorar sua máquina, e sim com a intenção de pontuar. Isso é contra-intuitivo, é uma quebra da experiência e, a mim, parece ter sido feito para manter as pontuações próximas e possibilitar um jogo menos agressivo de pontuações mais assertivas e máquinas menos poderosas.
Eu entendo a preocupação. O grande jogo que criou e definiu esse estilo, o Dominion, tem um pouco disso. O jogo é sobre construir um baralho eficiente para, na hora correta, pontuar alto e constantemente. O momento da saída é O grande momento do Dominion. Só que no Dominion existe o ponto da virada. O ponto em que você para de fazer algo e passa a fazer outra coisa. No Gnomopolis essa virada de chave não é muito clara e só fica mais clara na contagem de pontos.
Eu não participei do desenvolvimento do Gnomopolis e não conheci o jogo até que já estivesse publicado, então tudo o que digo aqui é apenas uma imagem que o jogo me passa. E mais ainda, eu adoro o jogo e tenho, vou continuar tendo e jogo com frequência. O que quero dizer é, que do ponto de vista do usuário, uma experiência sem ruídos e sem essas quebras funciona muito melhor. Um jogo só cresce – mercadologicamente falando – quando tem uma grande capacidade de cativar novos jogadores. Eu acredito que outros jogos do estilo fazem isso melhor que o Gnomopolis, mesmo que o Gnomopolis tenha uma produção mega caprichada, um preço super convidativo e ainda por cima o fato de ter um tema muito, muito bacana e, incrivelmente, presente. É o melhor jogo de engine building no mercado brasileiro, pra mim supera até o premiadíssimo Wingspan.
Design centrado no usuário
Eu não me canso de falar disso, mas acredito que, para a produção de jogos do Brasil decolar de vez, é necessário que as pessoas envolvidas se especializem em outras áreas. É como Newton fez. Se a física não podia mais avançar pela matemática da época, ele foi lá e fez avanços na matemática. Se os jogos não podem mais avançar pelo conhecimento de jogos em si, precisamos de gente especialista nas outras áreas que compõem a criação de um jogo, um produto.
Nesse sentido, falta também a capacidade das editoras fazerem este trabalho e o respeito, por parte de diversos autores, pelo trabalho da editora. Com o tempo vamos acertando as coisas e o Brasil se mostra quase lá. Um Spiel des Jahres ainda virá para as terras tupiniquins.
Renato,
Gostei muito do texto.
Eu joguei muito pouco o gnomopolis. Comprei, mas nunca via mesa, acabei vendendo.
O ponto que você colocou não me incomodou necessariamente, me parece apenas uma forma de dar uma pontuação no endgame e fazer com que as pessoas não fiquem repetindo o mesmo truque no engine building o jogo todo. Mas é fato que o jogo acabou tendo um aproveitamento menor do que eu esperava, a despeito da sua qualidade.
A Elizabeth Hargrave (designer do Wingspan) deu uma palestra onde uma das sugestões que ela dá aos designers é “não deixe os playtesters e jogadores mais experientes puxarem o jogo para algo mais pesado do que vocé deseja”. Acho que tem a ver com o que você disse aqui.
De qualquer forma, eu concordo com você que um jogo precisa ter algum elemento que é limitado ou dificil de conseguir que seja necessário a todos os jogadores. Pois é essa competição que gera a interação e a maior parte do divertimento.
Dou como exemplo o Russian Raioroads. Todo mundo sabe a importancia dos engenheiros e das moedas. A ponto de fazer o jogo parecer scriptado. Só que a diferença entre conhecer esse jogo e joga-lo bem é justamente saber quando disputar um ou o outro e que as vezes mais importante do que o que você quer pegar, é o que você deixa aberto pro adversário.
Jogos muito equilibrados não tem isso. É só a procura do que vai dar mais ponto. Você controla tudo, ninguém atrapalha o seu castelinho. O europlayer brasileiro adora isso.
Então, eu concordo contigo. Os jogos não precisam ser totalmente equilibrados. Uma iminente perda de controle dá muita emoção ao jogo.
Sds,
Eduardo
Fala, Eduardo. Beleza?
Obrigado por comentar =)
Cara, não é exatamente isso de ter uma coisa para todos correrem por essa coisa. É mais a questão de que balanceamento é overrated por simplesmente o balanceamento perfeito levar ao completo marasmo.
Sobre o Gnomopolis, entendo sim que eles quiseram fazer isso que você disse, no entando, isso quebra um pouco o fluxo do jogo. Isso é uma coisa que, a mim, causa uma estranheza no gameplay que é o que faz a diferença entre ele e outros do tipo.
Não que eu seja contra o balanceamento, não sou, só que acredito que as pessoas pensam pouco no target do produto. Se o produto tem como objetivo vender pra um público, tudo tem que ser feito pensando neste público.
Depois eu vou falar mais sobre isso. Vou trazer algumas coisas aqui, alguns conceitos.
Abraços,
Renato Simões