
Já estava pretendendo escrever um artigo sobre a estratégia e tática do Wingspan há algum tempo. Além do jogo ser muito popular, é um jogo que me agrada muito onde tenho um razoável número de partidas jogadas. É um jogo que possui bastante “literatura” sobre seus aspectos táticos e estratégicos, o que permite uma análise mais profunda e abalizada.
O lançamento da versão digital do jogo na Steam na semana passada (escrevo em Setembro de 2020) , apenas juntou a vontade de escrever com a oportunidade da pauta.
Eu ia falar do aplicativo também, mas o Paulo já gravou um vídeo sobre o mesmo. Recomendo a todos que vejam o vídeo antes de ler o texto, caso ainda não conheçam o jogo.
Antes de começarmos, cabem aqui os disclaimers comuns a esse tipo de artigo:
1) eu joguei uma quantidade razoável de vezes, mas não me considero um craque em Wingspan (e em jogo nenhum, pra falar a verdade – sou um jogador esforçado);
2) passei a vista na literatura existente e vou deixar referências ao final do texto;
3) Como sempre, estejam a vontade para discutir os pontos aqui colocados.
“Eles não param de migrar?”
Wingspan é um jogo de Elizabeth Hargrave, lançado no início de 2019 pela Stonemaier Games. Com 170 cartas representando pássaros diferentes em cada uma delas, o jogo é basicamente um “engine building” baseado na compra de cartas e gestão de mão e recursos.
Tematicamente, os jogadores representam “aficionados por pássaros” e sua tarefa é atraí-los para a sua reserva, que possui três habitats: a floresta, a campina e o mangue. A medida que os pássaros entram no seu habitat, eles enriquecem o bioma tornando a reserva cada vez mais atrativa a entrada de novos pássaros e a reprodução dos que vivem lá (os ovos).
O jogo possui 4 rodadas com uma quantidade de turnos decrescentes (a primeira com 8, a última com 5). Isso equilibra o tempo do jogo, pois a medida que o jogador incrementa sua reserva com mais pássaros, suas ações se tornam cada vez mais poderosas. Cada rodada possui um objetivo comum, que pode ser abordado de forma competitiva (quem fizer mais vence) ou “amigável” (cada um pontua pelo que conseguir fazer). Isso deve ser decidido pelos jogadores no setup do jogo.
No final, você pontua pelos pontos que as aves te dão, pelos ovos que estão postos nos ninhos, pelos objetivos de rodada, pelas cartas-bônus (objetivos individuais que você recebe no início do jogo e que pode ganhar adicionalmente durante a partida) e pelas comidas, presas e aves agrupadas (cartas colocadas embaixo de uma ave jogada, como resultado do poder desta – tematicamente é uma ave predadora ou aves que gostam de se juntar a outras).
Em termos mecânicos os jogadores possuem basicamente 4 opções a cada turno:
a) colocar aves de sua mão na reserva (pagando comida e ovos),
b) pegar comida no comedouro e ativar as aves da floresta;
c) botar ovos e ativas as aves da campina;
d) pegar novas cartas de aves e ativar as aves do mangue .
Cada uma dessas ações se torna mais poderosa à medida que mais pássaros estejam no habitat correspondente, não só pelos poderes dos mesmos, mas porque a quantidade de recursos obtida também aumenta.
Como se vê o jogo não é lá muito original em termos de mecânicas. Mas uma receita não precisa ser inovadora para fazer sucesso, basta usar bons ingredientes e ser bem executada. É exatamente isso que Elizabeth Hargrave faz em Wingspan. O jogo é muito bem ajeitadinho (embora existam algumas questões quanto ao seu equilíbrio, como veremos).
Ser um jogo bem-feito não me parece justificativa suficiente para o tamanho do sucesso de WIngspan. Nos Estados Unidos, o jogo sumiu das prateleiras e chegou a ser vendido por mais de US$250,00 no mercado de usados. O que aconteceu?
Isso é muito discutido e provavelmente as razões são muitas, mas eu vou citar aqui as que EU acredito terem sido mais fortes:
- O tema inusitado gera uma curiosidade tanto em jogadores como em pessoas casuais. O mundo dos jogos é entupido de jogos de fantasia medieval, economia renascentista, guerras e ficção científica. Temas ligados a natureza e a vida ao livre é uma tendência relativamente nova e vem sendo explorada com algum sucesso. Arboretum, Parks, Fotossíntese e Bosk são apenas alguns exemplos. Mas nenhum deles chega aos pés do interesse alcançado por Wingspan.
- A qualidade do produto e o marketing: Jamie Stagmeier é, sem sombra de dúvida, o melhor produtor de jogos do mercado. Ele entendeu que vende jogos para adultos e estes vêem os jogos não apenas como um brinquedo, mas também como um item de decoração. Seus jogos são bonitos na estante e na mesa e ele sabe como ninguém usar as redes sociais para divulgar seus produtos. Seus lançamentos sempre geram imenso hype no mercado de jogos, o que às vezes até atrapalha, gerando decepção quando o jogo não é a oitava maravilha do universo (Tapestry, por exemplo).
- A acessibilidade: Hargrave conseguiu fazer um jogo que é relativamente fácil de explicar para pessoas não acostumada aos jogos, ao mesmo tempo que traz um desafio razoável para os jogadores tradicionais. Wingspan é uma espécie de “Plataforma 9 ¾”, um portal entre o mundo gamer e os seres humanos normais.
- O “Zeitgeist”: essa palavra em alemão significa “o espírito do tempo”, isto é, aquilo que uma sociedade aspira e defende num determinado período da história. Wingspan é claramente um produto de sua época: um jogo com um tema “ecológico” que respeita razoavelmente a ciência sobre o tema que utiliza, feito por uma mulher, apoiada por uma equipe quase inteira de mulheres, que possui interações majoritariamente positivas, etc.Tudo é planejado para gerar uma experiência agradável, com baixo nível de frustração dos jogadores.
Wingspan é um daqueles casos onde o conjunto é mais do que a soma de suas partes e, pelo menos na minha opinião, merece todos os elogios e volume de vendas que recebeu. Aguardo ansiosamente suas expansões.
Aspectos Táticos e Estratégicos
I – Elementos do Jogo
O jogo dá a cada jogador 26 turnos e existem 15 espaços para colocar aves (5 em cada habitat). Dificilmente você vai completar todos, o mais provável é que você consiga colocar de 10 a 12 pássaros.
Os pássaros tem como atributos “funcionais” a sua pontuação (de 0 a 9), o tipo de ninho que ele constrói, o tamanho de sua envergadura (de onde vem o nome do jogo), os habitats em que pode viver, a comida que precisa ser-lhe oferecida para que ele se instale no seu habitat e o poder que ele possui, que pode ser:
a) nenhum;
b) instantâneo (quando a carta é colocada em jogo);
c) quando o habitat for ativado (é o mais comum) – marcado com a cor marrom;
d) quando um adversário faz uma determinada ação – marcado com a cor rosa.
O equilíbrio está em que pássaros que dão menos pontos são mais baratos (requerem menos comida) e possuem normalmente poderes melhores do que os pássaros que dão muitos pontos. Pássaros maiores ou tem poucos poderes ou ajudam os adversários (dão comida para todo mundo, por exemplo).
Aqui vai a primeira dica: busque colocar os pássaros mais baratos no início do jogo e os mais caros no fim. Normalmente, essa é a forma mais eficiente de jogar.
As comidas presentes no comedouro não são igualmente distribuídas. Há uma probabilidade maior de sair Minhocas e Sementes do que frutas ratos e peixes. Isso é importante principalmente para quem está jogando aves que estocam esse tipo de comida.
II – Setup
A sua estratégia dependerá muito dos objetivos de fim de turno ,da carta objetivo inicial que você escolher e da sua mão inicial. O ideal é tentar ficar com cartas que ajudem nos objetivos de rodada (principalmente os dois últimos), ou que possam colocadas em jogo rapidamente. Se tiver que escolher entre essas duas prioridades, dê preferência a facilitar o início do jogo.
Todo pássaro possui um tipo de ninho, isso é um parâmetro importante para a conclusão dos objetivos de fim de rodada ou das cartas-bônus. O jogo tem o cuidado de dizer nessas cartas o percentual de aves que atendem a condição exigida.
As cartas-bônus são contra-intuitivas, pois nos lembram dos objetivos do War, mas estão longe de serem decisivas. São pontuações complementares, que vão lhe ajudar, mas que dificilmente devem ser o foco principal do seu jogo. Escolha a carta-bônus em função das cartas que você vai manter na mão e não o contrário!
III – Estratégias Básicas:
As possibilidades estratégicas são bem variadas, mas segundo um bom artigo do BGG (referência no final), existem 3 estratégias básicas:
- Pontuar com Pássaros Grandes: a ideia é conseguir ter comida e aves de pontuação alta. Crie uma máquina capaz de gerar bastante comida na floresta e use a campina e o mangue para colocar as cartas de valor alto. Busque cartas que deem comida e cartas que lhe ajudem a reciclar sua mão (pois você estará sempre buscando as aves de alta pontuação que aparecerem).
- Estratégia da Granja: normalmente os últimos turnos de Wingspan são gastos colocando-se o máximo de ovos possíveis. A estratégia da granja tenta maximizar isso, enchendo a campina e colocando aves que chocam muitos ovos em todos os lugares possíveis.
- Estoque e Aglomeração: nada de distanciamento social. A ideia aqui é colocar aves que possuem ações de armazenar comida ou de juntar/comer outras aves. Se você for fazer essa estratégia, cuidado com os predadores. Eles normalmente dependerão da sorte para armazenar a carta (a envergadura da ave precisa ser menor que um determinado valor). Aquelas cartas que mandam rolar os dados também são suspeitas (lembre-se que peixe e rato tem menos probabilidade de saírem). Se você vai utilizar essas estratégia, lembre-se de ter sempre cartas na mão para poder colocá-las sob as aves. Compre tudo o que puder.
Pessoalmente, eu não faço nenhuma dessas estratégias puras. Eu avalio a minha mão, de acordo com o que eu tenho e com os objetivos de fim de rodada, tento montar um plano. Se eu achar que preciso de muitas cartas, priorizo o mangue, senão priorizo a floresta. Acho muito dificil jogar sem colocar duas aves na floresta assim que possível.
IV – Poderes:
A graça de Wingspan está em combinar os poderes das cartas. São eles que vão tornar uma estratégia comum em algo que lhe dá grande vantagem sobre os adversários.
Embora as cartas representem cada uma um pássaro diferente, os poderes podem ser classificados em poucos grupos. Uma primeira divisão é a que eu expliquei nos elementos do jogo. Dentro dessas divisões, existem também características comuns.
Há cartas que lhe dão novas cartas. Há cartas que lhe dão comida. Há cartas que ajudam a pôr ovos. Há os predadores (que comem uma outra ave se ela for menor que um determinado tamanho) e há as gregárias (que recebem uma carta, normalmente da sua mão, em seu grupo).
Mas existem dois grupos especiais que eu quero discutir aqui: os corvos (ravens) e as aves migratórias.
- Corvos (Ravens): Há muita discussão na internet sobre essas cartas, que elas seriam um fator de enorme desequilíbrio no jogo, principalmente quando elas saem na mão de um jogador. Basicamente, elas permitem trocar um ovo por duas comidas quaisquer. No início do jogo, quando você rala para pegar uma comidinha sequer, isso é realmente é uma opulência. Sinceramente, eu nunca percebi essa força toda. E não lembro de ter caído com os corvos no início de um jogo.
- Aves Migratórias: São aquelas que, se forem a última carta do habitat, podem migrar para outro habitat. Eu particularmente acho essas cartas muito poderosas, pois você pode manipulá-las para reforçar o habitat que você pretende ativar na próxima ação.
É muito importante nesse jogo estar atento as cartas que saem, principalmente do início até o meio jogo. Mesmo que a carta não sirva para você, você deve negá-la ao seu adversário, se puder. Lembre-se que ela poderá servir para ser colocada embaixo de outra ave, ou servir de troca para comprar uma comida adicional.
V – Pontuação
Em Wingspan a pontuação do vencedor normalmente ficará entre 70 e 100+. Acima de 80 costuma ser uma boa pontuação.
De maneira geral, metade dos seus pontos virá através das aves jogadas. É razoável colocar aves baratas para criar o “motor” do jogo, mas é preciso evitar colocar só ave de 1 ou 2 pontos. Mesmo enchendo-as de ovos, sua pontuação ficará muito limitada.
As cartas-bônus normalmente dão algo entre 3 e 8 pontos. Não vale a pena mudar seu curso de jogo por elas, mas pontuar bem em uma ajuda. Se estiver muito fora do seu jogo, tente pegar cartas novas (existem aves que fazem isso). Se for fazê-lo, tente na primeira metade do jogo, quando você ainda terá alguma flexibilidade. Tentar comprar uma carta feita (a lá Ticket to Ride) costuma não dar muito certo.
Os objetivos de fim de rodada não são essenciais, mas convém não deixar os adversários soltos. Sempre se preocupe em pelo menos não zerar nenhum objetivo. Eu me esforço em tentar vencer o da terceira ou da quarta rodada.
Os ovos são muito importantes. É a maneira mais fácil e óbvia de fazer pontos. Na última rodada, você precisa ter um motivo muito forte para fazer qualquer coisa que não seja botar ovos. Lembre-se que as aves vão estar provavelmente precisando de dois ovos para serem colocadas. E cada ovo é um ponto de vitória. Lembre-se que as comidas não valem nada no fim do jogo. Gaste-as sem pena para aumentar a quantidade de ovos colocada.
E por fim, temos as cartas e comidas estocadas. Se bem executadas, estratégias baseadas nisso podem ser muito fortes. Eu não sei fazer direito, acabo que estou sempre preocupado com outras coisas.
Conclusão
Embora Wingspan não seja um jogo muito original, ele oferece uma ótima experiência de jogo. E isso é o que conta.
Em partidas mais casuais, ele será quase um “multiplayer solitaire”, mas com jogadores experimentados, atentos aos que os adversários estão tentando fazer, haverá grande competição pela comida e pelas cartas, fazendo com que os objetivos de fim de round sejam muito disputados.
Além disso, o jogo é sensorialmente agradável, a arte das cartas é simplesmente espetacular. Os ovos são muito legais, oferecidos em cores diferentes, e todos os componentes são bacanas (os manuais são em papel couché, nunca tinha visto isso). O único ponto fraco que eu encontro é o pequeno espaço da ação “Colocar Aves”, que ficou espremido no canto superior do tabuleiro individual dos jogadores.
O automa é um dos melhores que eu conheço. Existe um aplicativo (extra-oficial, link nas referências) que o automatiza, permitindo que você praticamente só se preocupe com seu jogo
Uma coisa onde poderia haver um pouco mais de variedade é nos objetivos de fim de rodada. A grande maioria envolve ovos e ninhos. Eu não sei como poderia ser feito, mas acho meio repetitivo.
Elizabeth Hargrave foi extremamente feliz em sua estréia com um jogo de caixa grande. Wingspan é um clássico moderno. Estou muito curioso em relação a seu próximo jogo, Mariposas (para que sair do tema das asas, se deu tão certo)?
Não perdemos por esperar!
Referências
Wingspan, Initial Strategy Discussion – por Matias W e outros, disponível em https://boardgamegeek.com/thread/2126040/initial-strategy-discussion.
11 Wingspan Strategy Tips – por Emily, disponível em https://mykindofmeeple.com/wingspan-strategy-tips/
Wingspan Automa – https://myautoma.github.io/#wingspan
She invented a board game with science integrity. It´s taking off – por Siobhan Roberts, disponível em https://www.nytimes.com/2019/03/11/science/wingspan-board-game-elizabeth-hargrave.html

Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Obrigado por nos brindar com mais um excelente texto sobre um jogo que ainda não tenho (podem me julgar), mas já tenho um enorme apreço e admiração. Rstou no aguardo de um reprint para comprar.
Gostei muito das dicas de estratégias apresentadas, fazem muito sentido e apesar de parecer um jogo simples, pode ser um jogo bem competitivo para jogadores experientes.
Parabéns Eduardo e ao Covil dos Jogos pela qualidade dos textos. Já estou no aguardo do próximo.
Valeu pelos comentários, Daniel.
Em relação aos próximos textos, sei que pelo menos um deles não será tão útil a você (já está sabendo tudo)!
Eduardo!
Grato pelas dicas. Eu estou jogando Wingspan pelo boardgamearena e ate agora consegui perder todos os jogos. Fazendo sempre metade de pontos dos que os meus adversários.
Vou tentar utilizar suas dicas e ver o quanto consigo melhorar.
Joel,
Espero que ajude! Depois conta aqui como foi a evolução!
Mas o BGA é fogo, tem muito cracudo lá!
Sds,
Eduardo