Após escrever o artigo sobre o Arboretum, meu plano original era trabalhar em dois artigos mais densos: um sobre estratégia em geral e outro sobre o Wingspan, seguindo mais ou menos as mesmas ideias do artigo sobre o Stone Age.
Mas nesse meio tempo chegou aqui em casa do The Crew, jogo de vazas cooperativo que vem sendo barbada em todos os prêmios para o qual ele é elegível, culminando no Kennerspiel do Spiel des Jahr.
Embora existam argumentos bem fortes para questionar se esse jogo deve ser considerado um “jogos de experts” (na verdade, a maioria dos indicados ao kennerspiel sofre desse problema), bastou algumas mãos para perceber que, pelo menos em termos de qualidade, The Crew merece todos os prêmios aos quais concorreu.
Como eu não tenho um prêmio para dar (não sou nem parte do júri do Dragão de Ouro), o que posso fazer de melhor é furar a minha fila de artigos para falar dessa pequena preciosidade!
Criado por Thomas Singer e anunciado pela Devir para 2021, “The Crew – The quest for Planet 9” é um típico “Ovo de Colombo”. Parece tão simples e é uma coisa tão boa que fica difícil entender como ninguém pensou nisso antes.
Pensar até pensaram, pois este não é o primeiro jogo de vazas (se você não sabe o que é vaza, não se preocupe, o tio já vai explicar) com dinâmica cooperativa. Mas ninguém tinha fechado todas as pontas como Singer fez nesse pequeno grande jogo.
Afinal de contas, o que é vaza?
Vaza é um conceito central de uma gigantesca família de jogos de carta da qual pertencem o Bridge, Sueca, Copas, entre outros menos famosos.
Nesses jogos, o jogador inicial escolhe uma de suas cartas e a coloca na mesa. Os demais jogadores então precisam fazer o mesmo. Normalmente, é obrigado que eles sigam o naipe da carta jogada pelo jogador inicial (podendo jogar uma carta qualquer caso não possuam cartas desse naipe).
Vaza é o conjunto dessas cartas que foram jogadas durante uma rodada. Vence a vaza aquela carta que, segundo as regras do jogo, seja considerada a de maior valor. O vencedor leva as cartas para a sua área de jogo (e não para a sua mão) e inicia uma nova rodada. Normalmente, cartas de um naipe diferente do naipe puxado não são elegíveis para ganhar a vaza, a menos que sejam do naipe de trunfo (que, dependendo do jogo, pode ser pré-determinado por regra, sorteado antes da partida ou até escolhido pelos jogadores).
O jogo assim prossegue até que todos tenham jogado todas as suas cartas. O que varia nesses jogos é o que se pontua. Alguns contam as vazas ganhas (Bridge, Truco), outros avaliam as cartas que foram ganhas nas vazas, pontuando (Sueca) ou punindo (Copas) seus vencedores.
O Jogo
Em “The Crew” os jogadores são os tripulantes de uma nave espacial e as partidas representam suas missões, que começam no treinamento da equipe até a conquista eventual do mítico “Planeta 9” (uma brincadeira com fato dos naipes do jogo possuírem nove cartas).
É nesse sentido de campanha que está a grande sacada do jogo. O manual fornece 50 missões, cada uma com requisitos específicos para que a mesma seja cumprida. O requisito mais comum é resolução de tarefas, que basicamente significa um jogador específico ganhar uma vaza onde a carta designada pela tarefa esteja contida.
Além das tarefas, que podem ser inúmeras, o jogo ainda te propõe outras restrições, como a ordem em que as tarefas têm que ser resolvidas, limitações adicionais a comunicação e restrições ao uso de determinadas cartas para vencer as vazas.
Em termos mecânicos, ele é um jogo de vazas clássico. O baralho possui 4 naipes de cartas que vão de 1 a 9 e um naipe de trunfo (os foguetes) que vai de 1 a 4. Existe um pequeno baralho adicional (que serve para ditar as tarefas) e alguns marcadores de precedência para lembrar a ordem de execução das mesmas. Cada jogador também recebe um marcador do sinal de rádio e há um marcador para representar o capitão da missão (que sempre será o jogador que recebeu o “foguete 4”, a carta mais alta do jogo).
No início de uma missão, o capitão verificará seus requisitos, explicará a missão aos demais, sorteará as cartas de tarefas e, a partir do capitão e depois em sentido horário, cada jogador escolherá uma tarefa até que todas terminem, sem que haja comunicação entre os jogadores.
A partir disso o jogo se inicia, com capitão puxando a primeira vaza. Os jogadores devem agir de forma colaborativa ajudando com que as vazas que contenham cartas de tarefa sejam vencidas pelas pessoas certas.
“Houston, o 7 é seco!”
A comunicação permitida é extremamente limitada. Cada jogador pode, UMA VEZ POR MÃO, mostrar uma de suas cartas e designar, através da posição do marcador de rádio, se aquela é a maior carta do naipe (sinal na parte superior da carta), se é a única carta do naipe (sinal no meio da carta) ou se é a menor carta do naipe (sinal na parte inferior da carta). A carta fica sinalizada até que seja jogada. O sinal de rádio pode ser dado antes do início de qualquer vaza do jogo, mas não pode ser dado com uma vaza iniciada.
Versão DIY (Do it Yourself)
Para quem não quer importar e não aguenta esperar a Devir ter a pachorra de lançar o jogo no Brasil, bolei uma versão caseira para se jogar o The Crew. Sei que existem outras sugestões na Internet, mas eu não copiei ninguém.
Pegue dois baralhos comuns. Separe as cartas de Ás a 9 e 4 Reis em um dos baralhos. No outro, apenas de Ás a 9.
O primeiro baralho será o de jogo e o segundo será o baralho de tarefas. Os Reis servirão como os foguetes. Vamos convencionar aqui que o Rei de Paus é o foguete 1, o Rei de Ouros o foguete 2, o Rei de Copas é foguete 3 e o Rei de Espadas é o foguete 4. Mas você pode fazer da forma que achar melhor.
Imprima ou crie os 5 sinais de rádio. Uma boa alternativa é arrumar aqueles marcadores de “Sim, por favor” e “Não, Obrigado” das churrascarias. Eles funcionarão perfeitamente. No fundo, qualquer coisa que tenha frente verde e fundo vermelho serve. Use outras cores se você for daltônico.
Para os marcadores de precedência, basta recortar marcadores com os símbolos abaixo. Pode escrever num papel e recortar.
Os marcadores de SOS e Capitão são meio que opcionais, mas você pode criá-los também simplesmente arrumando um token de “first player” de um outro jogo qualquer e um outro marcador a sua escolha.
E as cartas filler que te lembram que tem uma carta na mesa, mostrada pelo sinal de rádio? Meu irmão, se você é cracudo a ponto de estar fazendo isso aqui, vai concordar que isso é “nutelagem” demais! Use os coringões, se quiser!
Pegue o manual do jogo e divirta-se.
Considerações Finais
No início, as missões são muito fáceis, inclusive, são chamadas de “missões de treinamento”. Estão ali apenas para ensinar os elementos do jogo e não haverá porque repeti-las depois que se entender os conceitos. Algumas mãos são resolvidas em uma ou duas vazas.
A medida que a campanha prossegue, as habilidades dos jogadores serão cada vez mais testadas. Contagem das cartas e naipes, além da atenção por parte de todos, serão cada vez mais necessários, mesmo daqueles que eventualmente não tenham tarefas a cumprir. E, como em todo jogo de cartas, a distribuição da mão pode dificultar ou facilitar demais. É provável que você precise jogar várias vezes algumas missões específicas para resolvê-las.
Eu recomendo aprender algumas técnicas comuns de jogos de vaza, como o estabelecimento do seu melhor naipe (para tornar cartas baixas vencedoras) ou o corte (descartar um naipe curto para cortá-lo com trunfo). Mas a principal técnica talvez seja o desbloqueio, isto é, descartar cartas vencedoras para permitir que o colega consiga vencer as vazas necessárias.
Como jogo cooperativo, esse jogo tem uma grande vantagem, pois ele é praticamente “anti-alfa”. A não ser que o cara seja um controlador compulsivo e burle as regras, cada jogador terá que entender o que está acontecendo para jogar direito.
O tema, como era de se esperar, é tratado de forma muito leve, podendo ser totalmente ignorado por jogadores que não ligam para esse tipo de coisa.
The Crew é mais um jogo bem-sucedido onde o designer pega uma dinâmica consagrada em jogos clássicos e a reapresenta sob uma nova roupagem, tornando-se sucesso de público e crítica. Mesmo que você consiga completar as 50 missões, o jogo não se esgotará, porque o desafio permanece, pois as mãos nunca serão as mesmas. As missões podem ser jogada de forma totalmente avulsa.
A maioria dos jogos modernos é de qualidade razoável para cima. A despeito dos vaticínios de apressadinhos, que declaram que um jogo é quebrado depois duas partidas, dificilmente isso acontece. E nós tendemos a revisar os que gostamos mais, então as notas tendem a ser altas.
Mesmo gostando de um jogo, é normal percebermos algo que parece não condizer com a proposta do mesmo e isso normalmente é o que faz um jogo perder pontos no review. Mas The Crew não tem esse problema. Dentro de sua proposta, ele não tem como ser melhor e por isso leva de mim o primeiro 5 nessa coluna (o fato de eu ser um ex-bridgista – que é um jogo de vazas – não é mera coincidência)!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
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Eduardo
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