A pandemia fez todas as indústrias do mundo reverem seus conceitos e a fabricação, comércio e consumo de Boardgames com certeza não poderiam ficar para trás.
O isolamento social retirou dos jogadores aquilo que é não só o principal insumo do hobby, mas a sua própria razão de ser: o contato de pessoas em uma mesa. Muitas dúvidas surgiram sobre como seria o futuro do Hobby.
É nesse contexto que quero contar a minha participação na Virtual Game CON, conferência online realizada entre os dias 22 a 28 de junho. Conferência essa que, acredito eu, marcará o início de uma verdadeira “Transformação Digital” em nosso Hobby.
Os adeptos do “boardgame a vapor” (aquela turma que rejeita qualquer modernismo eletrônico quando o assunto é jogos de tabuleiro, do BGA ao simples aplicativo que dita o setup do Cryptid) estão passando por um período difícil, tipo os Dinossauros após a queda do meteoro. Ou mantém sua pose de “ludista off-line anti-mundo moderno”, só jogando em casa com mulher e filhos, ou encaram as ferramentas virtuais e se conspurcam na orgia digital.
Voltaremos a isso no final. Por agora, vamos falar da Conferência!
Virtual Gaming CON
Tendo cancelado as suas conferências do primeiro semestre, (Dice Tower East e BBG.Spring, respectivamente), as duas instituições se uniram para fazer um evento online.
A ideia era juntar gestores de conteúdo, editoras e jogadores em um grande ambiente virtual. Para ter volume de eventos, principalmente de mesas de jogo, foi definido que qualquer pessoa que oferecesse uma atividade (que poderia ser tão simples quanto abrir uma mesa virtual no BGA numa hora marcada, aberta aos participantes), ganharia um “ingresso” para a feira. Quem não quisesse fazer isso, podia pagar US$10.00 e participar de qualquer evento.
A feira fez uma parceria com a Tabletopia que, sendo a “plataforma oficial” do evento, liberou durante toda a semana os jogos Premium de sua plataforma para o público em geral. Além disso, a organização teve o bom senso de não se limitar a isto e permitiu que jogos fossem apresentados em qualquer plataforma, inclusive entregando aos participantes um guia explicando como usar cada uma das ferramentas (muitas das quais eu nunca tinha ouvido falar, como o BoardSpace).
Eu soube dessa feira através do BGG apenas na quarta-feira, um dia após seu início. De qualquer forma, decidi comprar um ingresso pensando em ver as novidades e obter material para um artigo.
A experiência foi boa, mas gostaria de ter aproveitado mais. Esse é um problema do virtual, não é como se você “estivesse lá” e ficasse totalmente dedicado ao evento (como ocorre quando vou ao Doff). Não, você está em sua casa, e a sua vida normal continua. Então você acaba participando dos eventos de acordo com sua conveniência, perdendo as vezes muitas coisas interessantes.
Além das jogatinas, tinham as apresentações das editoras e dos geradores de conteúdo, mas isso em nada difere do que assistir o Youtube ou Twitch normalmente. Ok, você poderia fazer perguntas pelos canais específicos do Discord, do qual eu descobri um monte de funcionalidades nesse evento. Que ferramenta sensacional!
Não vi grande coisa nessas apresentações, infelizmente. Vi pela metade um gameplay do Tekhenu (novo jogo do Daniele Tascini), mas não deu para entender muita coisa (perdi a explicação), além de ser uma alocação de dados e ter um obelisco no meio do tabuleiro!
Vou falar das coisas que joguei e da experiência com as plataformas que foram utilizadas nesses jogos:
CODENAMES ONLINE (Site próprio)
A página de entrada – e todo o jogo – impressionam
Uma das melhores experiências foi experimentar a versão beta do Código Secreto, que ganhou um site próprio suportando partidas online, usando-se o vocabulário do jogo em vários idiomas, inclusive o português.
O site se chama codenames.game. Ainda está na versão beta, mas é totalmente operacional e pode ser experimentado por qualquer um. Fiz uma sessão com um grupo de amigos no domingo e foi super legal. O jogo permite praticamente tudo o que se faz na mesa, inclusive indicar as cartas sem escolhê-las definitivamente. Com o uso do Discord, a experiência fica perfeita.
No evento, joguei com alguns americanos e tive alguns problemas quando fui o spymaster (o cara que dá as dicas) por causa do idioma. É difícil escolher as palavras sinônimas que vão levar a associação correta numa língua que não é a sua. Perdemos, mas foi uma partida equilibrada e divertida.
Código Secreto é um design brilhante, daqueles que te faz pensar “como eu não pensei nisso antes”. É o verdadeiro party game familiar, as pessoas podem entrar e sair do jogo sem atrapalhar o seu fluxo e a jogatina é divertida sem a necessidade do “dedo no olho” (que é uma praga nos jogos de muita gente).
Não sei até quando dura o beta e nem se eles pretendem mantê-lo de graça. Mas recomendo a todos que experimentem! Vlaada e toda a equipe estão de parabéns!
FLOW OF HISTORY (Tabletopia)
The Flow of History – É um suplício empilhar as cartas deixando os símbolos a mostra
Flow of History é um jogo de desenvolvimento de civilizações baseado em cartas. Seu principal mecanismo é a forma como se compra as cartas do “mercado”: você precisa “investir” nas cartas (colocando uma quantidade de recursos a sua escolha e o seu pino de marcação, tendo que completar a operação em um turno futuro) ou você pode “atravessar” o investimento de outro jogador, pagando-lhe os recursos investidos e pegando a carta imediatamente.
Isso traz decisões muito interessantes porque para garantir uma carta você precisa alocar uma quantidade e dinheiro que a torne proibitiva para os demais interessados (e provavelmente isso é mais do que você gostaria de pagar por ela). Porém, você pode investir apenas visando encarecer uma carta que interesse aos outros, e ainda é possível lucrar com isso, dependendo da sua capacidade de comércio e do estado atual da economia (a oferta de recursos no meio da mesa).
O jogo permite que as combinações de carta gerem reações em cadeia e exige muita atenção à força e demais capacidades de cada adversário. Ao mesmo tempo, não é um jogo difícil de aprender. O jogo lembra um pouco o Innovation, sendo menos caótico que esse.
A partida foi bem legal, mas infelizmente a dificuldade dos jogadores em lidar com o a interface do Tabletopia fez com que a partida levasse mais tempo do que estava programado. Por questões de agenda, tivemos que liberar o canal do Discord e o moderador deu a partida por encerrada na metade do jogo. De qualquer forma, valeu para conhecer, é um jogo que eu possuo uma cópia, mas que ainda não tinha jogado.
PROJETO GIPF: DVONN, YINSH, ZERTZ (Boardspace)
Apanhando do Robô no DVONN
GIPF é um jogo que acabou batizando um conceito e uma série de jogos de mesmo estilo: jogos abstratos de duas pessoas usando basicamente colocação de peças e formação de padrões, todos eles desenvolvidos por Kris Burm.
Todos são jogos muito elegantes com nomes que parecem advindos de um projeto espacial: DVONN, YINSH, TZAAR, etc.
São todos jogos intrigantes, com regras simples, elegantes e que exigem uma boa antevisão das jogadas do adversário para a tomada de decisão.
No evento, o convite era para jogar os jogos dessa série no BoardSpace, que é uma plataforma aparentemente bem antiga, desenvolvida em Java, com visual meio anos 90 e com uns efeitos de som robóticos que parecem ter sido tirados do seriado “Perdidos no Espaço”.
Você precisa ter o Java instalado na sua máquina e baixar um .EXE para a sua máquina (há quanto tempo eu não via isso).
Apesar disso, a plataforma é extremamente funcional. Além dos jogos do Projeto GIPF, a plataforma oferece outros jogos, como Viticulture e Santorini. Você pode jogar contra um adversário online ou contra um BOT, o que facilita bastante o aprendizado. Vale a pena dar uma conferida.
Eu tive a oportunidade de jogar 4 partidas com Dave Dyer, que era um o host deste evento específico e um dos rapazes que programa os jogos (pode ser o único, não entendi direito quando ele explicou). Acredito que ele tenha deixado eu ganhar a primeira partida (que foi no DVONN, o jogo da imagem acima), mas depois só apanhei nos demais.
Além do YINSH, jogo que possuo, gostei muito do ZERTZ, jogo onde você precisa capturar bolinhas de uma determinada quantidade e cor para vencer. Lembra muito um jogo de Damas, porque normalmente você precisa forçar seu adversário a comer uma peça que não o ajuda muito de modo a abrir o jogo para você ganhar o que precisa.
Se você gosta de jogos abstratos dê uma chance pelo menos ao YINSH. Tenho certeza de que vai gostar.
WINSGPAN (Tabletopia) e Splendor (Tabletop Simulator)
Wingspan na versão oficial (DLC) do Tabletop Simulator
Aqui relatarei experiências com duas plataformas (Tabletop Simulator e Tabletopia) das quais já tinha desistido e, graças a Virtual Gaming CON, resolvi dar nova chance.
Desde o início da pandemia aprendi a usar o BGA e me adaptei muito bem a ele. Me perdoem os românticos, mas no computador eu quero que os jogos sejam adaptados para o computador. Simuladores de mesa são ideias bonitas na teoria e péssimas na prática.
Porque o mouse não tem a sensibilidade nem a destreza da mão humana, perde-se um tempo danado tentando pegar as peças sem bagunçar a mesa inteira, pegando o baralho inteiro quando se queria pegar apenas uma carta e vice-versa. Além do mais, fazer setup de jogo já chato a beça na vida real. Em um simulador, parafraseando o pica-pau, ”isso é realmente necessário? ”.
Mas, como a oferta de jogos nessas duas ferramentas (Tabletopia e TTS) é bem maior do que no BGA e nos aplicativos, e a conferencia ia apresentar muita coisa nessas ferramentas, resolvi encarar de novo.
Sexta eu baixei um mod do Splendor e joguei com um colega do Covil. O mod tinha o setup scriptado e isso tornou a experiência bastante tranquila. Jogamos quase no mesmo tempo que levaríamos na mesa ou no BGA. Isso me animou.
No sábado, juntei com dois amigos para jogar o Winsgspan no Tabletopia. Meu deus, foi um horror, o jogo durou 3 horas e meia. Mas, na última rodada, estávamos indo razoavelmente bem, o que me animou para uma nova tentativa no domingo.
Nesse meio tempo, comprei o DLC do Winsgpan para o Tabletop Simulator. Achei jogável, mas como já estávamos acostumados com a do Tabletopia, resolvemos ir por ali mesmo. E foi uma experiência “quase” boa. Ainda demorou um pouco mais, ainda nos enrolamos com as fichas de comida e os ovos, mas a prática ajudou e o jogo foi bem fluido.
Continuo tendo restrições a essas plataformas, mas a necessidade nos leva a nos adaptar. Estou com muita saudade do Brass. Acho que fim de semana vou encará-lo!
CONCLUSÃO
Em Jurassic Park, quando os personagens se confrontam com o fato de que os Dinossauros, que teoricamente eram 100% fêmeas, estavam se reproduzindo alguém diz: “A vida sempre dá um jeito”. A indústria de Boardgames deu seu jeito e está mais viva do que nunca!
Algumas constatações:
- Antes da pandemia, jogava uma média de 30 a 40 partidas por mês. Depois da pandemia, só no BGA joguei mais de 300 partidas nos últimos 3 meses. Isto é, eu estou jogando MAIS boardgames do que antes e não menos. Aprendi jogos novos e fiz novos amigos, graças ao Covil do Jogos.
- Mesmo voltando ao normal, os laços que se criaram nesse período não terminarão. Novos grupos foram criados, amizades foram feitas. Talvez se diminua o ímpeto inicial (que é alimentado por estarmos muito tempo em casa, com certeza), mas certamente terei alguma rotina de jogos com o pessoal que conheci.
- Enquanto escrevia esse artigo, li que já está decidido que a próxima BGG.CON (que ocorreria em novembro), será trocada por uma nova edição da Virtual Gaming CON. A Transformação Digital JÁ aconteceu. Para o bem e para o mal.
Vejam o gráfico abaixo. Ele mostra a evolução do volume de processamento dos servidores do BGA nos últimos 12 meses. Após um pico inicial, a coisa vai abaixar um pouco. Mas nunca voltará aos números de antes.
Confrontada com a extinção, a maior parte da turma do “Boardgame a vapor” não pensou duas vezes: o jogo virtual atende minimamente a minha necessidade. Às vezes, com vantagens. Porque não experimentar?
Resultado: O Hobby não corre nenhum risco de acabar. Eu diria que as pessoas nunca jogaram tanto Boardgame como jogam hoje. O Homo Ludens continuará vivo e buscando formas de criar o seu círculo mágico, seja na mesa da casa, na luderia ou numa tela de computador.
Que assim seja!
Eduardo Vieira é analista de sistemas, e participa do Hobby desde 2018, mas vem tentando descontar o tempo perdido! É casado, mora no Rio de Janeiro e vive reclamando que não tem parceiros para jogar tudo que compra!
Muito legal o relato. Participei também do evento e concordo com tudo. Além da BGG.Con já está certo que a Gencon desse ano deve seguir esse modelo, pelo que li.
Joguei o Forgotten Waters no TTS, que não rodou muito bem pois varios jogadores não tinham muita familiaridade com a plataforma… a curva de aprendizado é alta.
Joguei Karuba no tabletopia, que rodou muito tranquilo, pois o jogo é mais simples. Foi bem legal pois eramos mais de 10 jogadores simultaneamento, em várias mesas sincronizadas.
Joguei varios roll-and-writes (Tucana, My City, Bloxx, e o novo Railroad Ink) via twitch, onde cada jogador imprime sua ficha em casa e o streamer rola os dados/sorteia a carta.
No geral, curti muito a experiencia, e pretendo participar dos próximos. Concordo que essa nova modalidade veio para ficar, seja como alternativa ou complemento aos grandes eventos.
João,
Obrigado pelo comentário!
Para a gente que fica fora dos mercados principais, é bom porque temos com participar das feiras de alguma forma. Eu tenho a impressão de que mesmo quando voltarmos ao normal, os organizadores não vão abrir mão desse veículo (como as empresas não vão mais abrir mão do home-office).
A única coisa ruim é que vou perder meu atravessador anual do Azul! 🙂
Sds,
Eduardo
Parabéns pelo artigo Eduardo, fico contente pois faço não só parte daqueles que começaram a jogar mais, como conheci pessoas no qual topam, não só jogar muito como conhecer novos BGs, algo no qual sempre tive dificuldade na minha cidade. No meu ponto de vista, essas plataformas estão fazendo bem para todos, novas turmas, eurogamers (rsrsrs) e novos jogos. Um BGA, TTS ou outros, nunca substituirão a sensação de sentar em uma mesa, montar um jogo e se divertir com os amigos, mas que eles são uma ferramenta importante para nós amantes do boardgames, eles são sim¹
Gabriel,
É isso aí. Da mesma forma que as redes sociais não substituem a vida real, mas fazem parte dela e nos ajudam a poder aproveitar mais oportunidades de fazermos o que gostamos!
Obrigado pelo apoio!
Sds,
Eduardo